A opinião de ...

‘Deixar-se morrer’

 
«Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica só; mas se morrer, dará muito fruto (Jo 12, 24)». Esta expressão sobejamente conhecida de todos nós não salienta a questão da morte, mas antes a importância de dar fruto. ‘Dar fruto’ é gerar vida, é viver a vida com, é con-viver. Para a filosofia grega, o verdadeiro filósofo era aquele a quem se supunha que sabia morrer, isto porque se sabe morrer é porque aprendeu a viver. De facto, aprender a viver é hoje um problema evidente na maioria dos nossos concidadãos. O vazio gerado pelo «consumo compulsivo e a carga erótica que impregna e que infiltra no coração uma visão reduzida das pessoas e da capacidade de amar limpidamente» (Alfonso Hidalgo, teólogo) é a razão pela qual ‘deixar-se morrer’ se tornou algo abjeto para o pensamento hodierno. Ter medo da morte é reconhecer que, de alguma maneira, a nossa vida e a nossa existência foi fútil, foi inútil. Por outras palavras, se não soubemos viver bem não aprenderemos a viver bem.
Apesar de alguns filósofos como Sartre ou Heidegger nos digam que o homem é um ser-para-a-morte, a fé esclarece-nos que somos seres-para-além-da-morte. E somo-lo porque fomos gerados pelo princípio vital do amor. O amor é, simultaneamente, o condicionalismo e o fundamento vital que determina onticamente a minha existência. Aqui resulta o paradoxo mais aliciante da existência humana: a plenitude existencial passa inevitavelmente pela Cruz. A Cruz é o sinal mais sublime do amor, pois define a abnegação do ego em razão do tu; gera a afirmação total de Deus no coração daquele que aceita e vive a Cruz. Ser mais com Ele é ser mais comigo mesmo. Deste modo, ‘deixar-se morrer’ é aniquilar a força destruidora da tentação mais profunda do coração humano, isto é, o orgulho e a emancipação narcisística. É não permitir que Satanás, com as suas audazes e constantes tentações, nos afaste da ternura inebriante de Deus que passa inevitavelmente pela aceitação e vivência da Cruz.
A abertura a Deus obriga-nos a esvaziar o coração. Só um coração todo livre pode albergar Deus e a sua inefável misericórdia. É preciso ‘deixar-se morrer’ para que possa, a partir das cinzas, gerar-se ‘A Vida’; aquela chama que acalente, que renova, que inebria

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