A opinião de ...

Rua da Augusta Figura do Rei...

Pestanejei, fez-se clic na memória, prodigioso, deixei-me ir neste veículo intemporal, autónomo, com a força da natureza, a custo zero, apenas o da mente. E lá vou, no faz de conta, dentro do iate Britânia, de Setúbal ao Cais das Colunas, em Lisboa, tal como o fez a Rainha Isabel II de Inglaterra, há cerca de sessenta anos, em 18 de Fevereiro de 1957, com 31 anos de idade e já cinco de reinado. Existem várias portas de entrada na capital, como as de Benfica, mas esta, a da água, é sem dúvida a mais nobre. Depois de subir a imponente escadaria eis-me na sedutora e brilhante sala de visitas portuguesa, a nossa extasiante Praça do Comércio. As memórias, próprias e emprestadas, servir-me-ão de guia nesta arrojada aventura através do fascínio da História.
Sei que por aqui, só de imaginar arrepia, esteve o Paço Real ou Paço da Ribeira, residência oficial da Monarquia durante 250 anos, com o manso Tejo aos pés, refrescante e vitamínico.
Mas no fatídico 1 de Novembro de 1755, dia de Todos os Santos, nas profundezas do Banco de Gorringe, ali para os lados do Cabo de São Vicente, na subducção das placas Continentais, Europeia e Africana, a natureza preparava a mais mortífera hecatomba, a fricção gemeu, agigantou-se, propagou, fez tremer a Europa e Norte de África, ribombou nos ares, alevantou as águas, o Atlântico recuou, navios outrora naufragados foram vistos no fundo do mar agora a descoberto, o céu desabou, do Algarve a Trás-os-Montes, do Cabo de São Vicente a Lisboa. A Sé de Lisboa, Basílicas de S. Paulo, Santa Catarina e São Vicente de Fora, o Hospital de Todos os Santos, o Convento do Carmo e neste, o túmulo de D. Nuno Álvares Pereira, 35 Igrejas, 55 palácios e 10.000 edifícios colapsaram e 100.000 almas elevaram-se.
Mas aqui, neste chão, engolido pelo gigantesco Marmoto, sucumbiu o Paço da Ribeira com uma cobiçada Biblioteca de 70.000 volumes, pinturas de Ticiano, Rubens e Corregio e um valioso e milionário recheio da realeza lusa. Nas suas costas, inaugurada seis meses antes, reduzida a escombros a monumental Ópera do Tejo.
Por miraculoso desejo das princesas, neste Feriado, a Família Real, após missa matinal, foi passar o dia para Santa Maria de Belém. O nosso implacável Rei D. José, agachado atrás do Marquês de Pombal, exterminador dos Távora, perante a visão dantesca do inferno, possuído pelo medo, nunca mais dormiu debaixo de telha, os panos da Real Barraca da Ajuda abrigaram-no até à morte.

Vou em frente até à praça da Figueira donde me viro para contemplar o Tejo através desta histórica artéria. Por portaria Real de 1760 as 14 artérias da Baixa serão nomeadas e nelas se instalarão os ofícios e ramos do comércio. Após 15 anos, no seguimento desta rua, é colocada, na Praça do Comércio, a estátua Equestre de D. José I, em fundição de um só sopro, como a de Luís XIV em França, e dali a 100 anos é rematada com a construção do majestoso Arco Triunfal.
Esta actual Rua Augusta, por levar a direito à Estátua de D. José I, ficou designada, em vida do Narcísico e Iluminado Monarca, como a Rua da Augusta Figura do Rei…

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