Nordeste Transmontano

Ivo Canelas fala sobre “todas as coisas maravilhosas” em Mirandela

Publicado por Fernando Pires em Qui, 2023-10-19 12:12

O ator Ivo Canelas leva a depressão, o suicídio e as doenças mentais ao palco da Associação de Socorros Mútuos dos Artistas Mirandelenses, em duas sessões, no próximo fim-de-semana. Trata-se do monólogo “todas as coisas maravilhosas” interpretado pelo conhecido ator que assume um carácter imersivo, em que uma criança vai escrevendo, à medida que cresce, uma lista de coisas maravilhosas, na tentativa de ajudar a mãe a recuperar de uma depressão, depois da sua primeira tentativa de suicídio.
O primeiro espetáculo agendado para sábado, às 17 horas, já esgotou há vários meses, pelo que está marcada uma segunda sessão para domingo à mesma hora.
Escrito por Duncan Macmillan, o monólogo já está em cena, desde 2019 e integrou a lista dos 30 Melhores Espetáculos desse ano pela Comunidade Cultura e Arte.
O Mensageiro falou com o ator sobre esta peça.

Mensageiro de Bragança (MB) - O que é que as pessoas podem esperar deste monólogo e como é que surgiu esta oportunidade?

Ivo Canelas (IC) - Este monólogo foi um convite do produtor do espetáculo, o Nóbrega, da Água da Evénia, já há quatro anos atrás, em 2019, quando começámos o espetáculo, e é um texto de Duncan Macmillan chamado Todas as Coisas Maravilhosas, traduzido por mim e adaptado também pela Margarida Valdegato, é um espetáculo sobre um miúdo de sete anos que escreve uma lista de coisas maravilhosas para tentar convencer a mãe de que há razões para viver depois da sua primeira tentativa de suicídio. É um espetáculo que aborda temas complexos como a depressão, o suicídio, as doenças mentais, mas também as estratégias de sobrevivência. Não é um espetáculo cor-de-rosa, também não é um espetáculo exclusivamente negro, é aquilo que eu gosto muito na arte em geral, que é aquele registo que é meio dramático ou drama cómico, que é em tudo semelhante à vida

MB - Mas é um espetáculo também interativo, que faz com que nenhum espetáculo seja igual ao outro. Qual é a participação aqui do público?

IC - O nosso espetáculo distribui uma série de papéis com números, com frases, com coisas maravilhosas, e ao longo do espetáculo vou invocando esses números e as pessoas a quem eu distribuo os papéis respondem com as frases, e é uma mão cheia de pessoas, eu chamo, para fazer pequenos personagens. É essa a interatividade. E depois há mais algumas coisas, mas aqui eu não posso revelar.

MB - Portanto, este tema, todas as coisas maravilhosas, é um bocadinho antagónico àquilo que é abordado. Porque quando falamos de tentativa de suicídio, de saúde mental, falamos em coisas menos maravilhosas.

IC - Claro. Eu acho que é esse paradoxo entre, eu acho que o que o texto propõe é um paradoxo que eu acho que é interessante, que é por um lado, acho que temos que treinar a nossa capacidade de nos deslumbrarmos e observarmos as coisas simples e maravilhosas que nos rodeiam. O facto de acordarmos de manhã, dia de sol, quando deixamos que o telefone lá vai lanchar ali ao nosso quarto. Coisas que nos parecem perfeitamente vulgares, mas que na realidade todas elas somadas, são o que vão contribuir aos poucos para a nossa felicidade. Mas ao mesmo tempo, o que o texto também propõe é que, isto é maravilhoso treinar quando estamos num estado de saúde mental positivo, como mesmo com os altos e baixos que isso implica, mas uma vez descendo o nível de sustentabilidade da nossa saúde mental e estarmos um pouco em baixo ou mesmo deprimidos como diagnóstico, aí não há lista de coisas maravilhosas que nos ajudem e é preciso pedir ajuda profissional. Já não são os amigos que nos ajudam, já não são a família que nos ajuda, mas precisamos de ajuda profissional. E é estas duas frentes que o texto propõe.

MB - Como é que aborda este tema sem ser pesado para quem está a assistir?

IC - No início tive a sorte de poder mostrar o texto a alguns psicólogos e o espetáculo foi visto neste momento já por muitas dezenas de psicólogos e eles validaram o material no sentido de, pronto, ainda sou apenas um ator, não tenho aqui nenhuma experiência, para além da pesquisa que fiz, quer dizer, nenhuma experiência médica ou psicológica, não tenho muita psicologia sobre este tema, portanto senti que é delicado de abordar o facto de ter sido validado o material do espetáculo pela confiança de retirar um bocadinho as luvas à forma como eu estava a fazer o espetáculo, ou o excesso de cuidado. Eu atiro-me para o espetáculo com alguma, tento encontrar ali um equilíbrio entre, eu acho que a chave do espetáculo é colocarmo-nos todos na mesma tempestade, ou seja, não é no mesmo barco, porque nós estamos todos em barcos diferentes, com características mais económicas diferentes, portanto isso daí depois influencia muito a nossa forma de vida, mas estamos todos mais ou menos na mesma tempestade. E é aí que eu me coloco, eu não me excluo do tema

MB - Ao fim deste tempo todo, ao fim de tantos espetáculos e de tanto público, já sentiu que este monólogo já foi terapêutico para alguém? Alguém deprimido que estivesse a ouvi-lo e no final tenha dito que conseguiu ver a luz ao fundo do túnel.

IC - Tenho tido muito esse feedback. Uma das razões por ainda aqui estar a fazer este espetáculo é que aqui há algum lado, algum sentido de propósito neste material, para além do entretenimento. Depois do final do espetáculo, as pessoas, partilham com muita frontalidade e apertura temas em tudo semelhante ao espetáculo e partilham-no de vários sítios, tanto do sítio já da resolução, como do sítio do estou-no-meio, como do sítio de parece-me estar a entrar, como do sítio da surpresa, que estranho, que sensação de reconhecimento tão estranha com esse material. É um material que tem uma falsa simplicidade e que acho que contém uma enorme complexidade e que é quase uma armadilha que nos deixa entrar descontraidamente com um sorriso e com umas piadas e umas brincadeiras e de repente estamos dentro de algo que pode ser muito na nossa própria vida.

MB - Sente também que este seu monólogo pode contribuir para eliminar certos tabus, nomeadamente alguns que ainda persistem na nossa sociedade, em relação à saúde mental?

IC - Penso que sim. Acho que acredito que a cada espetáculo, a cada 200 pessoas que vão ver o espetáculo, espero que as pessoas saiam dali e vão falar sobre o assunto. Eu recomendo muito isso. Há muitos pais que vão, as pessoas vêm ver museus e depois trazem amigos e pessoas de quem gostam e trazem os filhos e muitas vezes trazem filhos abaixo da idade dita recomendada e eu sugiro, acho sempre ótimo, acho sempre ótimo que tragam as crianças, a idade recomendada é de 16, mas há pessoas que trazem crianças com 12, com 10, e eu sugiro sempre que tragam e depois eu espero sempre que a seguir conversem sobre o assunto, porque o texto não é linear, o texto não é preto no branco, o texto é complexo, portanto é ótimo que as pessoas a seguir vão pensar sobre o assunto e falar alto sobre ele, porque acho que é assim que se desmontam os tabus e os fantasmas.

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