A opinião de ...

Justiça para Armando Vara

O Tribunal Colectivo da Comarca de Aveiro condenou Armando Vara (AV), em Setembro, no âmbito do caso Face Oculta, nos seguintes termos: «Os actos praticados, com abuso da sua influência relativamente a elemento que integrava o executivo e a um administrador da EDP-IP, assumem especial gravidade. […] Assim, perante o acima e agora exposto, decide-se fixar a pena única em 5 (cinco) anos de prisão.» (p. 2647-8)
No momento em que a Relação do Porto analisa o seu recurso, convém olhar friamente para as 2781 páginas de um «Texto escrito sem uso das regras do Acordo Ortográfico» (p. 2780), mau-grado alguma inevitável gralha, deslize em «à vários anos, à muito que, à algum tempo» (p. 427, 753, 950-1), impropriedade vocabular («o tónico deverá […] ser colocado, p. 2259), confusão «eminente/iminente» (p. 2356)…Isso é o menos, quando a prosa, repetitiva, poderia ser reduzida a metade, e vemos AV convocado em demasiados lugares… Ler um volume assim é instrutivo, pois temos a biografia, mesmo intimidades e vencimentos (p. 470-472), dos arguidos, e os dignos magistrados não se inibem de nos dar linguagem baixa, do palavrão ao insulto. Há inesperadas peças de teatro, na base de conversas “escutadas” ‒ entre comas, nesse pudor judiciário que identifica um telefonema como «produto».
Na contestação, AV alegou que «não praticou os factos que lhe são imputados, nem cometeu qualquer ilícito criminal, os quais nem sequer se mostram minimamente indiciados, […] sendo as referências ao seu nome feitas frequentemente por terceiros, sem a sua intervenção, além de que o que efectivamente ocorreu, designadamente os encontros e conversas com Manuel Godinho, não permitem extrair que os demais factos, de suposta ilicitude, efectivamente ocorreram, [nem] podendo, em todo o caso, a “EDP‒Imobiliária”, ser considerada uma “entidade pública”, nem Paiva Nunes é “funcionário”, pressupostos indispensáveis para o preenchimento do crime de tráfico de influência» (p. 34-5). Aclarando, «invocou, como “questões prévias”, a “falta de tipicidade da alegada pretensão de demissão de Luís Pardal e Ana Paula Vitorino”, […] e a “falta de tipicidade das condutas em virtude de a EDP ‒ Imobiliária não ser uma entidade pública”» (p. 37).
Trocando por miúdos, AV é acusado de ter abusado da sua influência junto de terceiros ‒ solicitando, para isso, vantagens patrimoniais, ele que era vice-presidente do maior banco privado português, entre outros cargos bem remunerados, e via em Godinho um potencial cliente (p. 551) ‒, com fim à destituição da secretária de Estado de Estado dos Transportes em governo de José Sócrates, a qual apoiava o presidente do conselho de administração da REFER, conflituando com as empresas de Godinho, sendo que este, na «rede tentacular» (p. 85) que montou, ainda aproveitava, intermediado por AV, das ligações ao «funcionário público» Paiva Nunes.
Questão prévia: como é que, em boa semântica, se abusa de uma influência? Esta exerce-se, usa-se; pronunciado por ‘exercer influência’, fórmula recorrente no acórdão, ou por «[diligenciar] pela alteração do comportamento comercial da REFER e do Presidente do Conselho de Administração desta empresa» (p. 109), a falta de rigor discursivo descamba… em abuso, que o acórdão procura justificar: «Ou seja, o “abuso” traduz-se num exercício da influência que é visto como abusivo.» (p. 2325) Aqui, caberia perguntar: quem viu a influência como um abuso ‒ a extrair da «materialidade provada» (p. 2348), como reconhece quem não usa o melhor dicionário da Língua ‒, e a denunciou? Seria aquele «elemento que integrava o executivo» [Ana Paula Vitorino], por que sai AV condenado?   
José Sócrates considerava que os juízes trabalhavam pouco. As referências do Colectivo às conversas entre Sócrates e AV, destruídas por ordem do Supremo Tribunal de Justiça ‒ e que muita tinta devem ainda fazer correr ‒ , denunciam a vontade que alguns tinham de ver aquele como testemunha (p. 44, 50, 60, 66). Na sua falta (a par da nenhuma importância dada aos testemunhos de Jorge Sampaio, Almeida Santos, etc.), AV era a ‘circunstância’ calhada para o que não poucos consideram um ajuste de contas. É, da minha parte, um «juízo de inferência», como os vários «juízos» (p. 1681) feitos pelo Colectivo sobre AV.
A mão dura é evidente na discriminação em relação à paralela ‘narrativa’ sobre o arguido Lopes Barreira, que apanhou três anos e nove meses de prisão; ou em relação às conclusões tiradas da fórmula «meu / nosso amigo», culminando em exagerados «laços de amizade» entre AV e Godinho, que daquele diz um «chato do carago» (p. 1680), contradição desvalorizada em rodapé. A medida da culpa aterroriza, maior do que se fôssemos corruptos ou membros de uma associação criminosa… E passo questões processuais, bem como saber se as escutas não serão uma prova proibida no valorar de uma condenação. Atenho-me, tão-só, ao acórdão.
Afora presentes natalícios (p. 109-110, 274, 610; prática generalizada que o acórdão se esforça por negar, e, ainda que admitida [não foi], não é criminalizada no tráfico de influência) ‒ presentes que a polícia não encontrou nas buscas efectuadas, e, em última instância, nenhum resultado prático trariam a Godinho ‒, grave seria a entrega por este de, «pelo menos», 25 mil euros a AV e Barreira, que assim pagariam um “exercício de influência”, fórmula quase no final tornada «influência abusiva» (p. 2261). Tudo começa com uma escuta ‒ das muitas em 2009 ‒ em que Godinho refere «vinte e cinco quilómetros» (p. 893). Um analista de discurso logo entende que AV está a leste da conversa, e não tem que explicar em juízo idiossincrasias alheias; talvez Godinho continuasse a sonhar com troços de linhas férreas desactivadas.
(continua na próxima edição)
 

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3499

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