A opinião de ...

Cinquenta vezes cinco

Pedro perguntou a Jesus: “Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes devo perdoar? Até sete vezes?” Jesus respondeu: “Não sete, mas setenta vezes sete” estabelecendo assim um novo padrão na compaixão devida para com todos os semelhantes, explicitando na parábola seguinte, que este princípio não podia restringir-se a uma elite ou às suas franjas, mas difundir-se por todas as camadas da sociedade desde os mais ricos aos mais pobres e humildes. Esta nova visão do mundo espantou e incomodou a sociedade dirifente de então. Era um dos pilares da Boa Nova e um dos fundamentos de convivência interpessoal para a construção de um mundo novo, mais justo, mais solidário, mais humano, espantando as autoridades civis do governo da Judeia e incomodando a aristocracia religiosa do Sinédrio. O que diria hoje quando a trágica morte nas profundezas do Atlântico, de cinco milionários com sumptuosos e exóticos desejos de aventura movimentam mais recursos, atraem mais atenção, mobilizam mais instituições públicas, envolvem mais países, ganham muito mais tempo nas televisões mundiais e impressionam muitíssimo mais comentadores, decisores e população em geral que o fatídico desaparecimento, nas mortíferas águas do Mediterrâneo, de duzentos e cinquenta (ou mais, provavelmente muito mais) emigrantes, humildes, pobres, desgraçados, explorados e traficados, perante a indiferença das autoridades, o desinteresse dos meios de socorro, a insensibilidade dos cidadãos e as parcas notas de rodapé da comunicação social? Qual o caminho, afinal, percorrido, nestes dois mil anos? Onde param as sequelas da onda de choque provocada na Galileia há dois milénios? Que sociedade é esta em que vivemos e para onde caminhamos?
Durante vinte e quatro horas, todos os recursos informativos estiveram, ininterruptamente, alocados, em exclusividade a uma intentona, em solo russo, protagonizada por um mercenário, ambicioso, desbocado, sanguinário e vociferador que entendeu que a putativa morte de alguns dos seus companheiros, supostamente provocada por “fogo amigo” era mais relevante, mais importante, mais intolerável que a chacina promovida por si e pelos seus sequazes, contra os seus “irmãos” ucranianos, mas igualmente, do que a mortandade provocada nas suas próprias hostes pela sua obstinação irracional de conquista de alguns palmos de terra alheia. A morte violenta é de tal forma horrenda, bárbara e cruel que é difícil estabelecer níveis em que se possam basear quaisquer critérios de comparabilidade. Mesmo assim, é difícil que se possa encontrar um grau de maior gravidade no “tal ataque” sofrido pelas brigadas Wagner que possa suplantar as imagens, absolutamente horrendas da execução de um combatente dessa mesma unidade, levada a cabo pelos seus companheiros de armas com a inominável “justificação” de que não poderia haver outro tratamento, nem a mínima tolerância para quem, envergando uma farda não se disponibilizasse, de imediato e de forma automática a ser “carne para canhão”, se essa fosse a decisão estratégica do seu comandante, independentemente das suas motivações.

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3941

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