A opinião de ...

Trono de Gelo

A Quaresma bate à porta de cada inverno para discernir a sua origem. É por isso um tempo de continuados dias a perscrutar o interior das coisas e da vida. Propicia-se a isso, sobretudo porque se mune de três utensílios: oração, jejum, esmola. O papa Francisco na sua mensagem quaresmal para este ano apresenta-os como os remédios para a invernia de cada história, como os estímulos para o apressar da primavera. Ao lado destas práticas, oferece ainda três verbos: parar, olhar, regressar. Tudo isto para que a origem do inverno não esteja no coração de cada um. Penso que Francisco diz inverno como quem diz com a vida o ridículo da ilusão, da solidão e da vaidade, ao invés de dizer «a dignidade, a liberdade e a capacidade de amar».
É sugestiva a imagem que o Santo Padre colhe na Divina Comédia. Aí Dante faz-nos ver o diabo sentado num trono de gelo. Não creio que seja o trono a gelar o coração, mas o coração a gelar o trono. O coração trata-se sempre de uma nascente sobre a qual é preciso vigiar, sem pressas nem receios. Um é o sinal, que se concretiza em variadas circunstâncias, a permitir um diagnóstico sobre o nosso estado cardíaco: o respeito pela vida, pela vida de cada pessoa, pela vida da natureza, pela vida da comunidade. Quando este respeito pela vida falha, abunda a invernia gélida, pululam aqueles sintomas que Francisco identificou na Evangelii Gaudium e que na mensagem quaresmal deste ano volta a recordar: a acédia egoísta, o pessimismo estéril, o isolamento, o exibicionismo. Porém, muito mais importante do que lugar gelado que habitemos, reconhecido com verdade, é o caminho que se abre, luminoso e ardente. A esse caminho chama-se Quaresma. Tem também o nome de conversão ou arrependimento. Melhor, esse caminho para os cristãos traz o nome de uma Pessoa, Jesus Cristo, que pela oração, esmola e jejum se evidencia na Sua proximidade habitual. O papa ilustra estes tradicionais meios de conversão de uma forma muito sugestiva: a oração descobre as mentiras com que nos enganamos; a esmola é o verdadeiro estilo de vida para todos; o jejum desarma diante dos outros e dociliza diante de Deus.
Já na homilia de Quarta-feira de Cinzas o papa, noutras palavras mas sob a mesma luz, sugere três verbos – parar, olhar, regressar – contra a desconfiança, que gera apatia e resignação. Parar para não destruir o tempo, porque «o tempo não para… é coisa rara» como canta a Marisa e serve também para olhar e para contemplar o bem e o belo a florescer no meio das invernadas. Parar para olhar e contemplar o Caminho de regresso à Casa onde o coração é tocado pelo facto de se saber amado e por isso incapacitado de arrefecer à sua volta. Esse Caminho de regresso é esta Quaresma.

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3667

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