A opinião de ...

A cidadania contra a doutorice

A conversa recente com um amigo, extremamente competente na sua área de trabalho (competente porque reconhecido pelos seus pares e pelo mundo profissional e não pelo diploma), curiosamente não licenciado e muito menos licenciado como Miguel Relvas nem ainda licenciado como essa coisa que se designa pós-Bolonha, trouxe-me à mente a questão da procura social dos títulos académicos, muito mais do que a procura social das licenciaturas a sério.
Desde que os bacharéis em Direito conseguiram, em 1827, em Portugal e no Brasil, que o Imperador D. Pedro fizesse aprovar um Decreto em que, também eles como os médicos, podiam aceder ao título de Doutor, foi um corropio de luta pela posse de títulos académicos como outrora dos da posse de terras (Conde, Duque, Visconde, Barão). Aliás, a revolução industrial levou à substituição da posse da terra pela posse dos graus académicos e à perda de importância dos tais condes, etc.. No entanto, ao longo do Século XIX, a ridicularização popular da procura destes títulos manifestava-se no rifão «foge cão que te fazem barão». Ao que este respondia «mas para onde se me fazem visconde?».
Ao longo do Século XX, com a generalização dos cursos superiores de licenciatura, os licenciados para lá da Medicina e do Direito também quiseram o título de «Dr.». E Veiga Simão, ao criar o bacharelato, em 1973, também outorgou aos bacharéis o título de «dr.». Os licenciados, feridos no seu orgulho, reivindicaram um novo grau, o de Mestre mas o Estado não lhes reconheceu um novo título para lá do de «Dr.». Os tempos já eram de democracia e de igualdade e não já de privilégios sociais. A simples mulher do povo já era capaz de dizer àquela que invocava a qualidade de Deputada Nacional para lhe tirar a vez na fila do Correio que «tanto me faz que seja Deputada como Deputa. À minha frente é que não passa.».
Assiste-se cada vez mais à designação dos licenciados por «Senhor». É um sinal de democracia, importado sobretudo de Inglaterra, de França e da Espanha, onde, porém, as pessoas são designadas pela sua profissão. É um sinal de que a cidadania já não é um privilégio baseado numa qualidade mas sim no cumprimento da Lei, condição primeira de acesso aos direitos sociais.
De qualquer forma, ser licenciado ou doutor não representa hoje um privilégio distintivo em relação ao cidadão comum em termos de direitos sociais. No entanto, representa que, naquela área de conhecimento e de saber em que eles são especialistas só eles têm capacidades científicas e técnicas iniciais para o exercício de uma profissão, a um nível superior. Não é necessário ser licenciado para se ser um excelente profissional só que, em termos de acesso inicial, a licenciatura marca a diferença.
Também não será obrigatório chamar aos licenciados e doutores, conforme o caso, Dr. ou Doutor. Mas é recomendável que, em contexto profissional, se distingam pela função e pelo cargo que exercem.

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