Do alto dos oitenta e tal anos A Solidão
O rio separava as duas ladeiras. Era um rio de curso particularmente irregular que, já em setembro, no princípio do outono de alguns anos, a força das muitas águas pluviais “levava açudes e pontes”; mas, no verão, podia ver-se-lhe o leito com uma nitidez incomparável; e nalguns sítios, conseguia atravessar-se a vau.
A ladeira era íngreme. Para a percorrer, só por estreitos e tortuosos caminhos ou escorregadios carreiros. E, porque o solo sempre manifestou uma certa aridez, nela rareavam umas velhas oliveiras e amendoeiras que pouco contribuíam para o bem-estar daquela gente. Em contrapartida, além de sobreiros, zimbros, carrascos, arbustos e demais vegetação indígena, em raros e pequenos plainos que a ladeira avaramente oferecia, se cultivavam produtos hortícolas para subsistência. E também, para a subsistência, se criavam galináceos, coelhos, e o porco para a matança.
Não pode dizer-se que os habitantes daquela pequena povoação, que saudava o sol do alto da ladeira esquerda do rio, ligada à civilização por um caminho de piso irregular que os veículos motorizados dificilmente conseguiam percorrer, não pode dizer-se – repito – que os habitantes daquele povoado aceitassem de bom grado esta situação que lhes coube por herança dos seus antepassados; mas, mesmo assim, durante muito tempo, se curvaram à dureza da vida.
Depois de muito tempo de queixas, de protestos e de várias idas a feiras do concelho, onde os habitantes desta e demais povoações com semelhantes problemas vinham tomando conhecimento de que, noutros países, a vida era bem diferente daquela que sofriam ali, decidiram fazer o mesmo que já outros haviam experimentado.
Dentro de pouco tempo, alguns que partiram primeiro conseguiram motivar os outros a partirem também. Poucos anos passaram até que aquela povoação ficasse deserta. Apenas um casal de idosos por ali se manteve, pela impossibilidade de poder acompanhar o único filho, com a promessa deste de que, logo que tivesse a vida organizada lá fora, os viria buscar.
Resignados com a situação que se lhes deparou, logo se lastimaram, não só pela separação do filho, como pelas condições em que ficaram a viver.
Além da pequena reforma e da ajuda da Segurança Social, também a GNR passava por ali para se informar de como se encontravam, e de que mais ajuda precisariam. O casal agradecia, e assim se manteve algum tempo, mortificado pelo enorme silêncio, vivendo com muita dificuldade, sobretudo devido aos achaques de que padeciam e das longas noites, principalmente de inverno, em que, à luz fraca da candeia, sentados à lareira, passavam o tempo, lamentando a sua amargurada vida!
Pessoas amigas que, ocasionalmente, passavam pela sua casa, quase sempre lhe traziam do pouco que tinham, oferecendo-se para o que precisassem.
A todos agradeciam, dizendo, com tristeza, que ali foram abandonados, mas que, mesmo assim, não queriam deixar a sua casinha enquanto o filho não desse notícias.
Sem resposta às cartas que lhe enviavam, cada dia que passava era mais um martírio que aumentava a sua tristeza.
Até que a má notícia chegou: o filho, passadas umas semanas depois de ter chegado ao seu destino, foi vítima dum grave acidente de que veio a falecer. A pedido insistente dos pais que – diziam – haviam de sentir-se mais confortados com ele perto de si, encontra-se sepultado no pequeno cemitério daquela tão desolada, ingrata e isolada terra!
Sempre que podem, vão chorá-lo à sepultura. Mas, no dia de finados, na companhia de outros devotos que vão também recordar e chorar os seus defuntos, nunca faltaram com a sua presença, pedindo a Deus pelo descanso eterno daquele tão desafortunado filho, e pelo descanso eterno de todos os que ali descansam.