A opinião de ...

Carlinhos da Sé e do Bairro São João de Deus! II

Não havia ninguém que não conhecesse aquela figura patusca feita homem de média estatura e corpo magro, cabelo à escovinha e barba mal escanhoada, com esguio bigodito a espreitar pelos cantos da boca. Tinha uma cara de franzina inocência, um olhar de malandreco, uma voz sibilina e uma língua afiada. Estivesse chuva, frio, vento ou sol, os paramentos eram incontornáveis: socos feitos no «Feijão Sapateiro», onde enfiava os pés envoltos em dois ou três pares de meias, umas calças gastas e justas, um casaco preto coçado, por cima da camisa desbotoada e de uma camisola de lã. Era comum vê-lo de boné enterrado até às orelhas e, por vezes, com chapéu de abas largas. Por baixo do casaco, existia uma série de funcionalidades tipo canivete suíço: do cordel grosso que lhe segurava as calças pendia uma guita com o que agarrava uma meia de lã feita mealheiro; outro baraço «tinha-lhe à mão de semear» uma navalhita, que servia para o farnel; até a garrafinha do quartilho da pinga surgia atada como vinda do nada. Esta figura patusca deambulava pela cidade enquanto espaço de vivência e labor, surgia, de vez em quando, numa ou outra aldeia limítrofe, quando lhe dava para «emigrar», subia ao São Bartolomeu ou à Serra da Nogueira, seus centros religiosos de devoção e fé, ou calcorreava os montes dos arredores, quando a inquietude procurava sossego. Por onde passava era mimoseado com comida, uma pinga e uma ou outra moeda – «a moedita prá navalhita». Agradecia religiosamente. Era um pobre de Cristo, manso das Bem-Aventuranças e um afilhado de Nossa Senhora. Prezava os benfeitores, escarnecia das maldades e deleitava-se pela vida. Normalmente na Praça da Sé e encostado à parede da igreja, o seu «centro de operações», onde era apreciado pelos transeuntes, solicitado para tarefas a partir do mercado ou das mercearias e, tantas vezes, incitado pelos «polidores de esquinas» do café Cruzeiro, rapaziada sem vintém, que passeava os livros.
O Carlinhos nasceu a 1 de outubro de 1932 na Rua São João de Deus, a conhecida Caleja. Teve como nome de batismo João Carlos Pereira Quintana e tinha uma irmã e dois irmãos mais novos: a Sr.ª Amélia, o Gualdino e o Joaquim, este morreu em Angola, durante a Guerra do Ultramar. Nasceu saudável, corpo escorreito e tinha cabelo louro comprido. Mas foi atacado, ainda pequenino, por Meningite, que nunca foi curada devidamente, e sofria de epilepsia aguda, jamais controlada e que a pinga e o passar dos anos agravaram. Perdeu os pais muito cedo e ficou aos cuidados da avó Inês, que o estimou e acompanhou, em tempos de provações. Entretanto, a avó morreu, a grande perda da sua vida, e ele foi para o Albergue, onde nunca se deu bem. Faltava-lhe liberdade, desdenhava dos cuidadores e a ausência dos irmãos e dos sobrinhos, que moravam no Bairro São João de Deus, por cima da Caleja, constrangia-o. Até que fugiu e chegou ao Bairro a dizer que o queriam matar: “Albergue nem pensar, anda pra lá o diabo vestido de branco”. Aos vinte e tal anos, arranjou-se-lhe emprego como tarefeiro na estação de comboios. Acarretava sacos e distribuía encomendas na estação de caminho-de-ferro ou levava correspondência e fazia recados pela cidade. E ia bebendo a pingoleta na taberna do António Júlio, junto à Estação, ou na Maria Francesa, na Caleja. O Sr. Queiroz fez-lhe a farda azul da ferrovia à medida, onde cravou uma chapa com a inscrição «moço de recados», e o Sr. César fazia questão de lhe dar amiúde uma aparadela de cabelo e barba. Começava a ser notado e acarinhado na urbe.
Deu-se o 25 de Abril e em tempos ditos de liberdade e de fraternidade o Carlinhos foi dispensado da ferrovia por não ter os estudos primários. O seu sustento passou a ser a praça da Sé, lugar cativo para fretes às senhoras no mercado, acompanhar o vai e vem das pessoas ou cantarolar Amália chamado a esmola. A César o que é de César! Fanava-se por moedinhas e se não sabia ler nem escrever, a fazer contas ninguém o enganava.
E as histórias do Carlinhos desfiavam como contas do rosário …
… Continua no próximo número

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3955

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