A opinião de ...

A Sociedade X. A vida na Aldeia – A canalha ou ganapada b)

Mas o mais especializado dos passatempos era ir aos pássaros. Muitos pássaros, coitados, foram sacrificados. Sabíamos o canto de todos e identificávamo-los por ele. Pelo canto também sabíamos qual a o local mais previsível para os encontrar.
Começava-se com uma fisga. Os freixos tinham uma enorme diversidade de ramos bifurcados com a forma certa. Só era precisa uma navalha, uma tira de uma câmara de ar (eram raras, mas davam para muito) e um bom fio para atar. Terminava-se a arma com um resto de couro de uma bota velha. As munições abundavam pelo chão, mas eram mais procuradas as pedras mais esféricas, que não se desviavam tanto. Havia miúdos com uma pontaria certeira.
Tudo isto se passava entre idas à horta, ir buscar a cria ao lameiro, ou água à fonte. A canalha não tinha o dia todo para lazer.
Mas o passatempo mais especializado era, sem dúvida, uma actividade de fim de verão, a caça com armadilhas, as pescoceiras. Eram caras e normalmente emprestadas pelos irmãos mais velhos ou amigos. Precisávamos de formigas de asa, que cavávamos do chão. Nesta época as formigas raínhas, que têm asas, saem para ir formar outras colónias e são um petisco para a passarada. Assim, simulávamos o outono mais cedo, com uns caldeiros de água nos formigueiros, durante uns dias, mas o resultado era incerto. Uns dias mais tarde, cavávamos até doer o corpo todo e era uma grande excitação, se começavam a aparecer nos túneis do formigueiro. Em caso negativo, rumava-se ao formigueiro seguinte. Quando encontradas, as formigas iam para um cabaçote, uma pequena cabaça seca e perfurada, para entrar o ar, com cangos de uva para as alimentar.
Precisávamos ainda dos cedanhos, pelos da cauda dos burros, para atar as formigas à pescoceira. Tinha de haver um burro à mão. Anos mais tarde, os fios eléctricos substituíam os cedanhos na perfeição.
Saíamos pelas 5 da manhã para ter as armadilhas prontas ao nascer do sol. A técnica constava em identificar um ramo, com fezes de pássaro por baixo, o pousadouro. Depois, a uns metros, cavava-se o chão, para os atrair, o pousão. O solo, cavado de fresco, atraía a atenção dos pássaros e tinha de ficar em linha com o sol, ficando o pássaro no meio. Assim, as asas da formiga brilhavam ao sol, no pousão, atraindo o pássaro. A formiga era atada com os cedanhos ao cevadouro da armadilha, que era o mecanismo de disparo, quando o infeliz pássaro a tentava comer. Sempre havia os matreiros, que eram aqueles que tinham conseguido escapar uma vez e sabiam contornar o perigo. Para esses, a técnica tinha de ser mais apurada, enterrando todas as estruturas visíveis da armadilha. Davam muito mais luta.
A cada hora dava-se a volta às armadilhas, recolhendo os pobres pássaros, e fazia-se um cordão, prendendo as patas aos bicos. Às vezes davam duas ou três voltas, a tiracolo, quando a caçada corria bem. No intervalo praticávamos com a fisga e comíamos a merenda. As mais das vezes deitávamo-nos à sombra, junto a uma fonte, sempre sem fazer barulho.
Em anos maus, as formigas de asa quase tinham cotação na bolsa.

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