A opinião de ...

A Contar... (muito mais do que cantigas

David Ferreira foi-me apresentado, se não me falha a memória, em 2016, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, por ocasião da apresentação pública do livro “Clave de Sol – Chave de Sombra - Memória e Inquietude em David Mourão-Ferreira” de Teresa Martins Marques mas, obviamente, não resultou daí qualquer conhecimento mútuo. Este aconteceu, três anos mais tarde, quando fizemos, integrados num grupo de colaboradores da Gulbenkian, uma viagem à Arménia. A troco de uma ajuda, pouco mais que irrelevante, no check-in on-line, da viagem de regresso, ensinou-me um preciosíssimo e infalível truque para conseguir o melhor lugar possível e disponível em qualquer aeronave.
Foi uma sensação estranha conviver durante vários dias com alguém que era, para mim, já há muito tempo, uma companhia diária na viagem matinal entre a praia de Santo Amaro e a Doca de Pedrouços. Durante uma das várias refeições que partilhámos teve a oportunidade de me esclarecer que, contrariamente ao que eu julgava, não tinha, atrás de si uma enorme equipa de pesquisa e apoio à produção, muito pelo contrário o programa matinal “A Contar...” era feito por si, sem quaisquer outras ajudas dignas de menção. «Os próprios discos de onde retiro as músicas que passo, são meus. Quando não os tenho, compro-os, do meu bolso...» confidenciou-me, aumentando muito a admiração que já lhe dedicava.
Pouco tempo depois da nossa épica viagem ao oriente, brindou-nos com uma memorável história do século vinte, contada a partir das músicas que o marcaram, a propósito do centenário do nascimento da Amália de quem é um admirador incondicional.
O espírito de historiador, sempre presente no programa, retomou um lugar de relevo, a propósito da dramática e criminosa invasão da Ucrânia, ilustrado com as músicas que marcaram as duas grandes guerras do século passado.

Diariamente, pouco depois das 7:30 e sempre antes das 8:00 da manhã (aos sábados, às 10:00) passam na Antena 1, pela voz do David, as canções que marcam o nosso tempo partilhando com os ouvintes o gosto pela música que herdou da mãe com a sensibilidade que lhe ficou do pai.
A propósito dos acontecimentos que nos vão marcando e condicionando o quotidiano traz-nos todos os dias um enquadramento musical emoldurado em história e histórias, muitas vezes inéditas, da sua larga experiência e convivência com os melhores artistas nacionais e internacionais. São momentos que, a propósito das cantigas, vão muito para além delas.
O mesmo David que não poupa na dureza das palavras quando se tata de denunciar injustiças e desmandos de ditadores e criminosos, sabe encantar com as suas escolhas musicais, todos quantos o ouvem, sejam pessoas ou animais. (Estando a preparar um programa sobre pássaros, viu esse trabalho prolongado por um melro ou, quero crer, um rouxinol, que se aproximou da sua janela para responder ao “desafio”!)

Hoje, ao passar por Paço d’Arcos, e porque há acontecimentos que não podem ser esquecidos, muito menos agora, lembrou-nos, ao som de uma cantiga de Maurice Chevalier, o bombardeamento de Paris pelo exército hitleriano. Instintivamente, recordei uma conversa de há três anos, em Erevan, onde o intriguei afirmando que já tinha estado na capital da Arménia... antes mesmo de ter saido do solo pátrio.
Mas isso é outra história, “como havemos de contar…”

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