O novo Pelourinho da nossa vergonha
Desde que o homem vive na companhia de outros homens surgiram as primeiras regras de convivência social. Os actos humanos contrários às regras estabelecidas começaram a ser considerados crimes e a ser punidos. Era preciso reprimir a prática desses actos para que todos vivessem em paz. E, se nas sociedades mais evoluídas a punição do criminoso tende a ser o mais rápida e secreta possível e sem causar sofrimento físico ao criminoso, ao longo da história, a punição era sempre aplicada na praça pública e quanto mais brutal, demorada e cruel fosse, mais o povo acorria ao espectáculo, como ainda hoje acontece em alguns países.
O pelourinho, também designado pelo povo por picota, começou por ser uma simples pedra espetada ao alto colocada na praça mais central da cidade onde eram expostos para escárnio do povo e torturados os condenados, de acordo com a respectiva sentença. Tinham direito a ter o pelourinho os grandes donatários da coroa, os bispos, cabidos dos mosteiros, como prova e instrumento de poder (feudal). Em Portugal, os pelourinhos também foram considerados como um símbolo de liberdade e independência municipal e, segundo alguns historiadores, raramente foram utilizados para aplicar a pena de morte, sendo local de exposição, suplício e açoite dos condenados, conforme a sentença de condenação.
Alguns métodos de execução da sentença (aplicação da pena) tinham como finalidade, além da morte do condenado, causar-lhe sofrimento e proporcionar gratuitamente um espectáculo ao povo com o fim de o atemorizar. Na antiga Pérsia, existia o chamado escafismo, sendo o maior suplício infligido a um condenado de que há memória ao longo da história da aplicação de penas a criminosos, como nos relata o historiador Plutarco, da condenação de Miríades, por ter assassinado Ciro. O condenado era metido numa caixa de madeira (com alguns buracos), apenas com a cabeça de fora, atado de pés e mãos e com o corpo untado com mel; o mel e os dejectos atraiam as abelhas, vespas, formigas e outros insectos que começavam a devorar lentamente o condenado; e, para o suplício ser maior, continuava a ser alimentado à força com mel e leite até à morte. Há relatos de condenados que resistiam dezassete dias a este suplício, sempre presenciado pelo povo.
Na antiga Roma, a morte do condenado era sempre um espectáculo público; o condenado era levado para o recinto do circo e obrigado a lutar contra feras, touros leões ou tigres, até à morte (a chamada condenação por bestiaria); a condenação mais popular, na época de Jesus Cristo, cujo processo nos é relatado pela Bíblia, era a morte por crucifixão; depois do condenado ser espancado e açoitado durante vários dias, era obrigado a carregar a cruz de madeira por várias ruas da cidade até chegar ao local da morte onde era amarrado com cordas ou fixado com pregos na cruz, aí ficando exposto até morrer. Muitos condenados morriam enquanto eram espancados ou pelo caminho.
Todas as condenações à morte estavam associadas ao sofrimento do condenado antes da morte (a condenação por esmagamento do elefante, por desmembramento do corpo, por apedrejamento, pela fogueira, por empalamento, etc.) à excepção da forca e da guilhotina, esta última inventada em França precisamente como forma de evitar qualquer sofrimento físico ao condenado antes da morte.
As descrições das penas aplicadas nas antigas civilizações (o espectáculo da exposição e suplício no pelourinho ou morte do criminoso) referiam-se sempre ao cidadão condenado por sentença do Tribunal. Não existem relatos do espectáculo público de exposição escarniosa de qualquer cidadão quando chamado a prestar contas à Justiça. Depois de mais de cinco mil anos de que há memória escrita de julgamentos e de condenações de criminosos, a humanidade ainda não aprendeu a respeitar o cidadão detido para prestar contas à Justiça e se defende das acusações que lhe são feitas; além de não o respeitar, agora, o espectáculo do suplício e do açoite psicológico do cidadão/detido começa antes da condenação definitiva e foi transferido da praça pública do município para nossas casas onde, para vergonha de todos nós, se ergue o pelourinho para aí diariamente ser exposto e enxovalhado sem defesa possível.
Um cidadão (qualquer que seja o seu estatuto, pilha-galinhas ou pilha-bancos) - é inocente até ser condenado; a presunção de inocência não significa que se presuma culpado só pelo facto de ter sido detido pela Justiça, como muitos fazedores de opinião nos querem fazer crer. (em direito criminal não existe a figura jurídica de presunção de culpa). A Justiça não pode ser feita conforme a convicção política, a crença religiosa ou os sentimentos de cada um de nós. Por mim, contra o que alguns escrevem, só pretendo que na nossa sociedade, nenhum cidadão seja “declarado inocente para salvação da classe política”, nem seja “declarado condenado para salvação da classe jurídica”. Não quero a negação da Justiça geradora de conflitos sociais. Desejo que todo o homem tenha um julgamento justo sem sombras de revanchismo (vinganças), para que a Justiça triunfe sempre, sem necessidade de ser exposto no pelourinho da nossa vergonha.
Para todos um bom ano!