A opinião de ...

A perceção da guerra e a guerra das perceções

Ganhar uma guerra é mais do que ganhar a soma das batalhas. Derrubar um povo é mais do que depor os seus Governantes.
Tal como Nuno Sousa escreveu em 2008 no seu livro A Guerra das Perceções, edição da Universidade do Minho, o Sistema Político Internacional sofreu grandes alterações nos últimos anos, que resultaram no surgimento de novos paradigmas, quer ao nível dos atores em confronto, quer da tipologia das operações.
Emergiram, igualmente, novos conceitos em consequência dos avanços tecnológicos e da constatação da necessidade de uma maior integração dos diversos instrumentos de poder do Estado. Mais do que nunca, procura-se uma melhor compreensão da situação e uma melhor coordenação das respostas, sejam elas preventivas ou reativas. Neste quadro geral, a informação, e todos os recursos a ela inerentes, têm vindo a obter um cada vez maior destaque, e, digo eu, mais do que nunca, interferem no processo de tomada de decisão com o objetivo de influenciar as atitudes e os comportamentos dos decisores.
Em fevereiro de 2022 o mundo assistiu, incrédulo, àquilo que julgava pertencer apenas aos filmes escuros, a preto e branco, dos arquivos históricos sobre a Grandes Guerras mundiais.
Um país soberano irrompeu pelas fronteiras de outro país soberano, às portas da União Europeia, aos tiros de morteiro e mísseis balísticos, querendo impor pela força bruta a brutalidade das suas ideias a um povo do qual se diz irmão. Estranha forma de fraternidade, esta, em que Caim, o irmão maior, volta a querer matar Abel, o mais fraco mas visto como o mais justo.
Na Ucrânia, a mais feroz das batalhas não se trava nas ruas de Karkhiv nem nos arredores de Kiev, trava-se no gabinete presidencial de Zelenski transformado em bunker ou nas paredes destruídas da maternidade de Mariupol.
Em todo o mundo grassa a perceção de que Putin vai ganhando a guerra militar mas a verdade é que é Zelensky que vai ganhando a guerra das perceções.
A comunicação social transmite a imagem de dois estadistas em campos opostos do espetro comunicacional.
Putin, de fato, gravata e ar austero, ligeiramente curvado, parece em sofrimento, fala com ar zangado.
Zelensky, jovem e jovial, sem o formalismo da pose de estadista, vestiu a pele do povo. De camuflado, fala diretamente à população, olhar fixo no ecrã do telemóvel que muitas vezes o acompanha pelas ruas da sua capital, mostrando ao mundo, e aos seus, que é um dos deles, que não os abandona e, por isso, não pode ser abandonado.
Com uma mensagem simples e direta, falando olhos nos olhos do espetador, entra pelo coração adentro.
“Não preciso de boleia, preciso de munições.” E aí vai ele agarrado ao telemóvel, a maior das armas para conquistar o mundo.
A partir desse momento e dessa declaração, estava dado o mote para a batalha da comunicação. O mundo ficou rendido a Zelensky, como ainda ontem se viu quando falou ao Congresso norte-americano.
A cada bombardeamento a uma maternidade, a um jardim de infância, a uma escola… a cada choro desesperado de uma mãe, criança ou avó… a cada tanque capturado pelo trator de um humilde agricultor… Zelensky entra na perceção popular encarnando a pele do bem contra o mal, do Abel que, nesta história, se defende do ataque mortífero de Caim.
Aquilo que Putin fizer a partir de agora servirá apenas o propósito de transformar o líder ucraniano num mártir da liberdade. O homem pode morrer mas a imagem perdura.
O conflito armado deixou de ser aquela situação distante, de horror, para entrar pelas nossas portas dentro, como uma telenovela, em que cada indivíduo se transforma em ator e realizador da sua própria história.
As imagens invadem o espetro digital. Já não captadas pelas objetivas profissionais mas pelo olho do cidadão comum. E, nesse campo, é a Ucrânia quem vai ganhando. Essa é a perceção do mundo.

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