A opinião de ...

Nas nuvens

Um dos atrativos das viagens entre o litoral nortenho e a região transmontana é a paisagem natural que é dada a contemplar ao viajante.
Assim, quem circula no sentido ascendente (oeste-este), de manhã cedo, encontra em muitos dias, do túnel do Marão em diante, tapetes de nuvens que encobrem totalmente os vales e deixam apenas ver os cumes dos montes que se elevam acima desse manto diáfano.
Em contraponto, quem se dirige para o litoral ao final da tarde, depara-se frequentemente com construções de nuvens, carregadas ou suaves, pousadas sobre as montanhas que limitam o horizonte, filtrando o sol poente em diversas tonalidades, num espetáculo luminoso.
As nuvens estimulam a imaginação e não é por acaso que se usa a expressão “estar nas nuvens” para designar alguém que está distraído, ou melhor, que deixa vaguear a sua consciência ao sabor de associações livres.
De facto, quem já não teve ocasião de observar as nuvens e procurar identificar as figuras por estas desenhadas, ao menos quando era criança ou em companhia de alguma?
Mas, além dessa atividade lúdica, todos podemos reconhecer momentos em que um cenário nublado desse tipo desata um comboio de imagens na nossa cabeça, que se vão sucedendo por relações de similitude, contiguidade ou contraste, mas cuja direção nos escapa, como se sonhássemos acordados, até que um estímulo mais forte rompe essa cadeia associativa, captando a nossa atenção. E, muitas vezes, se tentarmos reconstituir o percurso imaginário efetuado desde o princípio até final, já não sabemos como passámos de uns temas para outros e como chegámos até ali.
Essa forma de meditação natural - que se distingue quer da meditação simples, em que os passos do pensamento são dirigidos pelo sujeito pensante, em função de um objetivo, como acontece quando se procura resolver um problema de matemática ou fazer um plano, por exemplo; quer da meditação transcendental, em que o sujeito que reflete vai além da meditação simples, observando e procurando superar os próprios condicionamentos do pensar – não é, porém, tão inocente como parece.
Na verdade, essas fantasias que sulcam a mente de cada um, estão também a traçar direções para o próprio comportamento, ainda que inadvertidamente, ao mesmo tempo que compensam carências efetivas ou imaginárias. Deste modo, o nosso sistema de imagens tende a responder mecanicamente às tensões corporais e mentais que se sentem no nosso interior, retirando margem de liberdade à nossa ação.
Assim, o esfomeado divaga mentalmente com comida e o sedento com bebida, orientando a sua conduta no sentido de obter satisfação, mas, da mesma forma, o ressentido fantasia com vingança, o fraco devaneia com poder e o desvalorizado com reconhecimento, só para citar alguns exemplos de situações internas por que todos podemos passar em algum momento da vida.
Este mecanismo da consciência, muito útil para ajudar a equilibrar o psiquismo e mediar a sua relação com o mundo natural e social, merece, por isso, que se lhe preste alguma atenção, considerando a sua aptidão para dirigir a conduta. Nesse sentido, todos deveríamos ser mais conscientes dos devaneios que guiam as nossas existências, porque neles podemos divisar sentidos provisórios que acabam por se esgotar e deixar uma sensação de vazio existencial – como nos acontecia em crianças com os brinquedos novos desejados e, pouco tempo depois, abandonados -, mas que, além disso, podem mesmo produzir violência interpessoal.
Por isso, é importante treinar e cultivar a atenção, como ferramenta psicológica e como atitude, para se dar conta dos fenómenos da própria consciência e da direção e efeitos das nossas ações, rejeitando o que a debilita e entorpece.
É certo que essa atividade compensatória da consciência não esgota todo o seu trabalho e que, às vezes, a inspiração irrompe no quotidiano de cada um, guiando os respetivos passos numa direção renovada. E também é verdade que darmo-nos conta dos devaneios que povoam a nossa mente não é suficiente para parar essa torrente nem desviar a sua direção, ainda que nos proporcione, pelo menos, uma margem de escolha - o que já não é pouco.
Mas avançando um passo mais, com esforço e com a ajuda de outros, partindo da observação das divagações mais frequentes, pode-se chegar a identificar qual o “problema” básico que as mesmas tendem a compensar e que conforma uma atmosfera (ou clima) mental sob a qual a vida de cada um se desenrola. Esse clima mental básico - denominado “núcleo de devaneio”, na definição dada pela Psicologia do Novo Humanismo - é, em geral, invisível para quem vive dentro do mesmo, tal como não vê a nuvem aquele que está dentro dela. É nos momentos de fracasso e desilusão, quando esse núcleo de devaneio se desgasta, que o mesmo se desvela e se transforma, possibilitando um salto evolutivo, desde que o processo seja compreendido e a pessoa não se ressinta com a experiência. Pelo exposto, é importante estudar intencionalmente o próprio núcleo de devaneio, com o interesse de dar uma direção evolutiva a esse processo de mudança, por que todos, em algum momento, passamos.
Aprender a dar-se conta das próprias fantasias ou divagações e a desvelar o núcleo de devaneio devia, por isso, fazer parte da educação básica de cada ser humano. E se isto é válido para os indivíduos, aplica-se igualmente aos povos e à humanidade em geral, como o momento histórico atual nos tem vindo a mostrar.

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3906

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