A opinião de ...

O argueiro e a trave

O pontificado do papa Francisco tem sido espantoso. O seu encanto é sentido por todos e vive-se uma nova dinâmica na Igreja. Ao fim de ano e meio perdura ainda o natural estado de graça inicial, com poucas polémicas. Uma das excepções foi a recepção das frases acerca de economia na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. Aí o Papa afirmou coisas dramáticas: «devemos dizer não a uma economia da exclusão e da desigualdade social. Esta economia mata» (53); « A desigualdade é a raiz dos males sociais» (202).
Qualquer surpresa manifesta simples ignorância de doutrina social da Igreja. O estilo talvez seja novo, mas o conteúdo é corrente desde o «Ai de vós, os ricos» (Lc 6, 24). No entanto, tanto os que criticaram como os que aplaudiram, passaram ao lado da verdadeira intenção do texto. Simplesmente porque a maioria dos comentários esqueceu que Francisco descreve a alegria do Evangelho.
Isso manifesta-se no facto do majestoso documento, um dos maiores da história da Igreja, ser reduzido a um punhado de extractos sobre temas sociais. Curioso também que fiquem esquecidas as referências ao aborto (213-214), crise da família (66-67) e ordenação das mulheres (104), por exemplo.
As considerações papais sobre a desigualdade social foram tomadas como argumento para as lutas político-económicas, censuradas como erradas ou louvadas porque oportunas. O documento foi discutido em termos políticos, económicos, financeiros, sociais, ideológicos; em todos os sentidos menos no cristão, que é o único que tem. Não se trata um manifesto socialista, populista, radical, sul-americano, etc, mas uma exortação pós-sinodal «sobre o anúncio do Evangelho no mundo actual».
As críticas centraram-se na alegada falta de rigor descritivo e incompreensão económica dos mecanismos actuais. O sistema não é assim tão negativo, dizem, e devemos-lhe o sustento e prosperidade de que apesar de tudo gozamos. Francisco não é comentador político ou analista financeiro, mas líder religioso, anunciando a Boa Nova ao mundo. O que o ocupa é, mais que as instituições concretas, a atitude de fundo com que vivemos.
Mas a maior incompreensão veio de muitos dos que entusiasticamente acolheram estas expressões; precisamente porque as intrumentalizaram para os seus interesses particulares. A concordância é oportunista, pois os ajuda no combate contra os adversários; os quais, alegadamente, o texto censura. Quando o Papa diz coisas que lhes agradam, apoiam; mas irão contestá-lo quando ele lhes contrariar os pontos fracos. Ou seja, exactamente quando a função papal lhes for dirigida e mais necessária.
O pior é que quase todos os que aplaudem as acusações da Exortação nunca as aplicam a si próprios. Mas a única forma de a intervenção papal ter efeitos é se for acolhida por cada um no seu coração, examinando até que ponto essas censuras são aplicáveis a si mesmo. O propósito é a conversão de vida e isso nunca se faz procurando argueiros na vista dos irmãos mas tratando da trave na própria vista (cf. Mt 7, 3).
 

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