O homem e a sua circunstância…
O nosso conterrâneo Dr Armando Vara foi condenado, em primeira instância, pelo Tribunal de Aveiro, no mega/processo Face Oculta onde também prestavam contas à justiça mais de três dezenas de arguidos, a maior parte acusados da prática de crimes de corrupção ou com estes relacionados. A decisão deste tribunal não é definitiva e, em recurso, ainda vai ser apreciada por outro tribunal. Ao Dr Armando Vara, (a quem dirijo uma palavra amiga de solidariedade nesta hora difícil da sua vida) que ainda se presume inocente, como a qualquer cidadão, desejo o maior êxito no recurso e que a justiça triunfe sempre, absolvendo os inocentes e condenando os criminosos. Não conheço os termos e fundamentos do acórdão dos juízes daquele Tribunal, e como foi interposto recurso, mesmo que o conhecesse, sobre o mesmo não teceria quaisquer comentários, cumprindo um dever deontológico, (dever imposto a todos os juristas mesmo não tendo intervenção processual). O que conheço daquela decisão resume-se apenas ao que li e ouvi na nossa imprensa. Porém, não é sobre a análise daquela decisão que vou pronunciar-me, mas apenas sobre duas outras questões.
A primeira é sobre a declaração do Dr Armando Vara “estou em estado de choque” depois de ouvir a leitura do acórdão que o condenava a cinco anos de prisão (situação normal para qualquer cidadão), e “acho que a condenação tem muito a ver com a minha circunstância”. Muitas pessoas, logo concluíram destas palavras (não sei qual a dimensão que o próprio lhe quis atribuir) que tinha sido condenado por ter sido um político muito conhecido a nível nacional com um currículo excepcional: foi eleito deputado várias vezes e fez notórias intervenções na Assembleia da República, depois foi secretário de estado, um influente ministro, de bancário foi promovido a administrador da banca, gestor de grandes empresas o que lhe permitiu obter, ao longo da sua vida, um confortável desafogo económico; uma carreira subida a pulso agora travada com uma condenação, não passaria de uma humilhação ou mesquinha vingança exercida do poder judicial sobre o poder político/executivo.
A dimensão filosófica desta questão “um homem é ele e a sua circunstância”, não cabe nesta crónica com espaço limitado. Um homem é sempre “ele e a sua circunstância”. Qualquer principiante destas coisas do direito aprende no mais elementar tratado de direito criminal que o homem é o resultado do ambiente familiar em que nasceu, foi crescendo e desenvolveu as suas capacidades, da sua educação, companhias e amizades que fez e até dos livros que leu e dos professores que lhe couberam em sorte, etc. Como diz o nosso povo na sua sábia sentença “diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és”. Até aqui nada de novo. Por isso, quem já assistiu a um julgamento, sabe que o juiz pergunta sempre ao arguido, (para além do crime de que é acusado) a idade, os bens e rendimentos que tem, o ambiente familiar em que nasceu, cresceu e vive, habilitações literárias, enfim tudo perguntas para aquilatar a personalidade do arguido e assim melhor ponderar a aplicação de uma pena de acordo com essa personalidade; dito de outra forma, a circunstância em que o arguido desenvolveu a personalidade e as possibilidades que se lhe proporcionaram (a força de vontade evidenciada) para poder alterar os seus comportamentos. Parece assim que o homem nasceu para ser escravo da sua circunstância. Mas, se isto pode ser verdade, não é tudo pois também existe o reverso da medalha, ou seja, a forma como cada um tem a capacidade de reagir a essa maldição da sua circunstância.
A outra questão refere-se ao comentário de um jornalista, referindo-se ao mesmo processo Face Oculta: “os Juízes foram corajosos ao condenar todos os arguidos com pesadas penas”. Na minha opinião, nada mais injurioso e ofensivo do que esta afirmação para um qualquer juiz. Os juízes não têm de ser corajosos na aplicação das penas; apenas têm de aplicar a lei aos factos que, na sua convicção, são dados como provados na audiência de julgamento (sem esquecer a própria personalidade do arguido que tem na sua frente). Aqueles que hoje afirmam que os juízes foram corajosos ao condenar políticos influentes, ricos e poderosos, qualquer dia, são os primeiros a proclamar a tímida cobardice dos juízes por estes não aplicarem a lei ao jeito deles, sem procurar saber o que foi discutido dado como provado e não provado na audiência de julgamento. Estes não querem justiça, mas fogueiras na praça pública.
Escrevia o filósofo espanhol José Ortega Y Gasset (escritor falecido em 1955): - “eu sou eu e a minha circunstância e se eu não a salvo a ela não me salvo eu”. A nossa circunstância pode ser alterada e, se cada um nada fizer para alterar (se desviar) a sua circunstância, tudo continua na mesma e pode ser escravo dela. Todos nós nascemos e crescemos com a nossa circunstância, isto é uma fatalidade; mas não temos de viver com a nossa circunstância; a vida de cada homem, nisto reside a sua liberdade, deve ser sempre norteada para se desviar da sua circunstância para não ser destruído ou triturado por ela. Dito de uma forma mais simples, o homem tem de agir na vida, em todos os aspectos, para alterar ou modificar (melhorar) a sua condição, a forma de estar e viver; por isso, a sociedade exige sempre a alguns cidadãos detentores de elevadas responsabilidades sociais económicas e políticas uma certa atitude, um comportamento diferente, exemplar, dada a sua condição…
Para terminar esta crónica, transcrevo mais um pensamento deste filósofo: é falso dizer que na vida decidem as circunstâncias. Pelo contrário: as circunstâncias são o dilema, sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas, quem decide sempre é o nosso carácter. (com muita humildade, o sublinhado é meu).