A opinião de ...

Pandemia e Sísifo

Todos conhecemos, ou relembramos, ou lemos pela primeira vez, o que se passou com Sísifo: um personagem saborosamente criado pela mitologia grega que, provido de sabedoria suficiente para enganar a morte, por duas vezes o fez, e por ser de mau caráter (diziam os gregos e a tradição), foi forçado a ir para as profundezas do mundo subterrâneo, onde Hades (deus dos mortos) o acolheu. Ora, fora ele condenado a repetir eternamente a tarefa de empurrar uma pedra até ao topo de uma montanha. Sempre que estava alcançando o cume, a pedra rolava montanha abaixo até ao ponto de partida, pois algo de misterioso impelia este movimento. De novo, Sísifo carregava a grossa pedra. Castigo de Zeus!
O escritor e filósofo, Albert Camus, nascido na Argélia (quando era colónia francesa), autor da obra A Peste, de 1947 – que agora se releu neste momento de pandemia – elaborou um ensaio sobre a necessidade de o homem se revoltar contra os excessos de algumas práticas sociais. Sobretudo, Camus pretendeu demonstrar, partindo deste mito, que é preciso lutar contra a exploração do trabalhador que executava as tarefas todos os dias, de forma repetitiva e exaustiva, fato que já Chales Chaplin denunciara no seu grande filme Tempos Modernos, datado de 1936. No entanto, quanto a mim, poderemos analisar, quer a posição dos deuses gregos, quer o constructo de Camus, acerca do mito de Sísifo, numa outra perspetiva. Agora, relacionando-o com o que se vai passando com os altos e baixos da COVID 19.
A pandemia carregamo-la nós há quase dois anos, com altos e baixo. Somos sísifos. Fomos condenados, não por sermos malvados, não porque os deuses quisessem castigar-nos (e daí…quem sabe, se não anda aqui a mãozinha de qualquer dinato ou belzebu, não é grande mestre Gil Vicente?). Não é uma razão de fazer mal aos outros. Não é, finalmente, a ideia de perturbar, de forma intencional, a vida económica e social. Mas porque nós somos tentados a fugir às regras, às normas. É uma questão de comportamento individual, levado ao paroxismo, à ansia e ao desejo de um regresso tão breve quanto possível, ao que era a nossa normalidade. Parece mover-nos o consumo exacerbado de bens não essenciais (o que são bens essenciais, questão a colocar…pois diverge o foco conforme o patamar económico-social de cada cidadão, de cada família…ah, a pirâmide das necessidades de Maslow!).
Agora fiquei na dúvida: não sei se deva concluir esta crónica, pois haverá alguém que discorde. Contudo, irei encaminhá-la, pois na diversidade se valoriza a discussão e se constrói a democracia.
É que, ao contrário do que se possa pensar, com este ir e vir, com esta andança do “verde” para o “amarelo” e mesmo para o “vermelho” da matriz criada, não estamos a humanizar as nossas relações, porém a desumaniza-las.
Termino com este excerto do poema Sísifo, do grande escritor Torga:
«Recomeça
…E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar
Sempre a sonhar e vendo
O futuro logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.»

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3840

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