A adaptabilidade na crise
A crise é sempre um processo de mudança, de saída de si mesmo; é ir para mais longe e ver de forma ampla e mais larga. E é pela via do sofrimento, pela via da disciplina que a crise suscita em cada um de nós a força que nos impulsiona e nos motiva para uma mudança assertiva e contundente, para uma transformação em ordem a um bem maior e a um bem-estar mais pleno e apaziguante.
Não há, na verdade, outro caminho e outro jeito de ver as coisas. A mudança, a conversação – aquilo que os gregos chamavam de “metanoia”, isto é, mudança de pensamento que leva a uma mudança de atitude e que provoca um crescimento pessoal em ordem à perfeição –, é algo tão necessário como premente na vida e na história de cada um de nós. No entanto, conscientes da necessidade constante de mudar em ordem a um crescimento e de desenvolvimento pessoal mais afirmativo, tendemos a fugir desta realidade, preferindo ficar na sombra de nós mesmos, fugindo constantemente de nós mesmos, de nos encontrarmos no íntimo do nosso coração, de compreendermos quem somos, o que somos e o que estamos destinados a ser. Mais, é neste encontro íntimo e único comigo mesmo que me possibilita reconhecer o quão frágil e carente eu sou, o quão preciso de ajuda e quão necessitado de Deus eu sou. Esta assunção de consciência gera em nós a humildade de nos reconhecermos frágeis e, simultaneamente, infinitamente amados e desejados por Deus. E é precisamente aqui que, após esta viagem de autoconhecimento, Deus tem um projecto e um propósito novo. Ele dar-me-á as ferramentas e indicar-me-á o caminho que leva à santidade, à perfeição.
O perigo é grande! Passar uma vida sem saber quem se é ou qual a missão a que Deus nos chamou na nossa existência deve trazer muita angústia ao coração e à alma daquele que passou uma vida a viver no faz de conta, a representar, a ser uma ou várias personagens que nunca foi nem nunca será, de ter vivido a vida sem que a ela (a vida) tivesse passado por ele. A verdade é que passamos uma vida a representar uma personagem (ou, pior, personagens) que vai ao encontro do que os outros ou o ambiente circundante espera de nós ou o que quer de nós, mas cruzamos uma vida sem saber quem verdadeiramente somos e o que realmente podemos ser na vida.
É na obediência, isto é, na escuta atenta da voz de Deus que podemos mudar a nossa vida para melhor, para termos a paz e a alegria de sermos quem somos, de darmos vida à vida de todos e de quantos se abeiram de nós. Aliás, Jesus, como tão belamente exalta a Sagrada Escritura, aprendeu a obediência no sofrimento e, por isso, Deus o exaltou (cf. Heb 5, 8-9). Isto é uma lei no caminho de Deus! É o único modo de nos esvaziarmos de nós mesmos e de nos enchermos d’Ele. Daí que confessar-se é engolir-se: é difícil reconhece e verbalizar o nosso pecado. Mas, depois de nos confessarmos, sentimo-nos livres, em paz e vazios de nós mesmos.
O nosso caminho para a santidade implica sempre olhar para dentro de nós mesmos. Descobrir onde está o nosso maior defeito é descobrir o caminho para a nossa santidade. Mas atenção: a santidade é um dom de Deus e não depende ‘somente’ de mim! Ela é uma graça dada por Deus, um dom que implica, à posteriori, a minha adesão a este projecto e o meu total compromisso nesta demanda. A iniciativa é sempre de Deus, não do homem. A esta iniciativa, cabe ao homem dar-se e doar-se, total e integralmente, a este projecto que se torna em nós um propósito, uma missão e um sentido.
Uma espiritualidade materialista pode tornar-se numa grande tentação, como atesta a heresia do pelagianismo. Aliás, o Papa Francisco tem chamado atenção para o perigo desta heresia no interior da Santa Igreja, à qual ele chama de “neo-pelagianismo”. Na sua Exortação Apostólica 'Gaudete et Exsultate', o Papa apresenta os desafios da santidade no mundo atual, dando, ainda, indicações sobre o modo como viver a santidade neste tempo que apresenta tantos desafios à fé.
Porém, o Santo Padre recorda que há dois inimigos da santidade, a saber: o gnosticismo e o pelagianismo. O gnosticismo é, segundo o Santo Padre, uma autocelebração de "uma mente sem encarnação, incapaz de tocar a carne sofredora de Cristo nos outros, engessada numa enciclopédia de abstrações”. Trata-se de uma "vaidosa superficialidade”, que pretende “reduzir o ensinamento de Jesus a uma lógica fria e dura que procura dominar tudo”. E ao desencarnar o mistério, preferem “um Deus sem Cristo, um Cristo sem Igreja, uma Igreja sem povo "(cf. nº 37-39). Por seu turno, o neo-pelagianismo é, segundo o Papa Francisco, outro erro gerado pelo gnosticismo, que provoca a glorificação da vontade humana, sem consciência dos limites e ignorando a iniciativa divina. “Sem nos darmos conta, pelo facto de pensar que tudo depende do esforço humano canalizado através de normas e estruturas eclesiais, complicamos o Evangelho e tornamo-nos escravos dum esquema que deixa poucas aberturas para que a graça atue”. Francisco, por outro lado, lembra que é sempre o dom da graça que ultrapassa "as capacidades da inteligência e as forças da vontade humana" (nº 54). Às vezes, constata, "complicamos o Evangelho e tornamo-nos escravos de um esquema". (nº 59).
Posto isto, resta perguntar: como é que isto tem implicação e interferência na nossa vida e na nossa vivência espiritual? Existe uma iniciativa divina em todos os homens? Essa iniciativa convida e apela ao ‘sim’ livre e consciente do ser humano? Sim, a resposta é sim. É sempre Deus quem toma a iniciativa, quem nos desinstala, quem nos convida a sair, a largar e a deixar para trás tantas coisas, como tantos projectos e sonhos. No fundo, a vocação é isso mesmo: é dizer ‘sim’ a um novo caminho, a uma nova vida, a uma nova missão e deixar para trás tudo aquilo que lá havia. Larga e vai! E olhai como isto é difícil! Como é penoso e doloroso largar...! Mas temos que o fazer: largar para nos transformarmos, para nos tornarmos mais plenos, mais livres e mais luminosos.
Saibamos confiar n’Aquele que nos prometeu a graça da santidade e pedir, insistentemente, que Ele nos agracie com este dom de aprender a amá-Lo de todo o coração.