A opinião de ...

Esperteza saloia...

Na edição de seis de julho, O Mensageiro de Bragança dava a seguinte notícia: - “casal deu seis prédios às netas para não pagar dívida ao banco”. Nesta crónica, comento a esperteza do devedor que faz desaparecer o seu património com o intuito de não pagar as dívidas e como o credor pode reagir para garantir o seu crédito. A prática milenar de o devedor doar ou vender os seus bens a familiares ou a terceiros para prejudicar os credores foi engendrada pela ganância do homem em acumular riqueza quando foi instutuído o direito de propriedade. O devedor incumpridor sempre foi considerado um cidadão desonesto e, ao longo da história, objecto de castigos físicos. Quando o devedor não tinha bens pagava o seu corpo sendo condenado à condição de escravo, vendido ou morto às mãos dos credores.
O Direito das Obridações é regido pelo princípio: - o património do devedor é a garantia geral dos credores - Como diz o nosso povo, “tens bens ao luar tens crédito”. Uma forma simples de um cidadão enriquecer é contrair dívidas e depois desfazer-se do património para não pagar aos credores; se um devedor assim proceder, o credor pode requerer ao Tribunal que declare esses actos sem efeito, vendas e doações, e os bens regressem ao património do devedor para serem executados pelo credor. A acção a intentar pelo credor contra o devedor chama-se Acção Pauliana ou Impugnação Pauliana – prevista no Artigo 610 CC – que diz o seguinte: Os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito que não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor... a/ - se o acto tiver sido realizado com o fim de impedir a satisfação do direito do credor... b/ - se desse acto resultar a impossibilidade de o credor obter a satisfação do seu crédito...
Segundo as leis do antigo Egipto, o devedor que não saldava as suas dívidas era reduzido à escravidão e denominado “escravo por dívidas” para diferenciá-lo do “escravo originário”. No antigo direito romano, segundo A Lei das Doze Tábuas – 451 AC - (assim chamada por ser escrita em madeira) – na Tábua III – “o devedor era levado pelo credor amarrado pelo pescoço e pés... e era permitido dividir o seu corpo em tantos pedaços quantos os credores”.
A Acção Pauliana teve a sua origem no direito Romano e este nome porque foi promulgada no tempo de um pretor chamdo Paulus. Como acontece nos dias de hoje, é preciso ocorrer uma tragédia ou um grande escândalo para se criar uma lei. Segundo o historiador romano Lívio, o cidadão Caius Publíbio ofereceu a sua própria pessoa como garantia para pagamento de uma dívida de seu pai ao credor Lúcio Papírio. Como a dívida não foi saldada, Lúcio Papírio aprisionou Caius Publíbio, fê-lo seu escravo e violentamente abusou do seu corpo. Segundo aquele escritor, Caius era um jóvem cidadão, belo e de famílias abastadas da cidade; um dia, Caius conseguiu fugir e numa assembleia de cidadãos romanos relatou as atrocidades praticadas por aquele credor. Na cidade houve manifestações de repúdio da lei que reduzia o devedor à escravidão e das práticas infames a que era sujeito. O escândalo casou tal alarme na cidade que os cônsules eleitos para aquele ano (326 AC), para devolver a paz à cidade, foram obrigados a promulgar uma lei – Lex Poetelia Papíria - que revogava a Lei da Tábua III e proibia a entrega do devedor ao credor para pagamento de dívidas. De futuro, só o património do devedor garantia o pagamento de dívidas. Esta lei, na evolução do direito, foi uma manifestação de cidadania que definiu a primazia do valor da vida, honra e dignidade do cidadão face ao valor dos bens materiais.
Como referi na anterior crónica, distinguir o bem e o mal é inerente à própria condição humana; faz parte de um feixe de direitos e obrigações que todo o homem reconhece, pratica e respeita em qualquer sociedade e em qualquer parte do mundo (direito natural). O casal que doou os bens às netas com a intenção de não satisfazer os seus compromissos tinha consciência do prejuízo causado ao credor e da sua ilicitude. Talvez a oportuna opinião de um jurista evitasse ver-se metido nos trâmites de uma acção pauliana...

Edição
3637

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