A opinião de ...

Medo

A passagem de um ano para o outro para além das mundanidades, da farândola festiva e amenidades quantas vezes eivadas de hipocrisia, obriga os incomodados com eles próprios a fazerem o balanço do passado e perspectivar o futuro. Do ouvido, lido, respigado e conversado retiro a palavra medo. Não o medo aos medos da minha meninice que surgiam nas encruzilhadas, nos locais ermos, nas travessas esconsas onde os meninos não deviam ir, nem de noite, nem de dia, muito menos à hora do meio-dia. O medo apossou-se das pessoas pela insegurança reinante, não só no referente à escalada de violência com os consequentes ataques aos mais débeis, também, e em especial porque o Estado deixou de ser confiável, acrescido da constatação de o continuado enfraquecimento dos mais fracos a favor do fortalecimento dos mais fortes. Este sentimento colectivo em parte é consequência da crescente audácia dos que não tem vergonha em cometerem toda a casta de indignidades porque não mostram medo das consequências. Ou seja: as normas de honra e vergonha apanágio das sociedades vinculadas aos valores da civilização ocidental estão a ser substituídas por um sistema escorado na sistemática violação desses mesmos valores dado a sua transgressão não acarretar sanções aos transgressores. Uma das péssimas originalidades da nossa época, em relação às épocas passadas é a coexistência, paralela ou entrecruzada, das correntes de pensamento mais preocupadas com os prevaricadores do que com as vítimas. Essa constatação provoca medo, aumentando até ao pavor na constatação de a solidez das instituições estatais exibir fundas fracturas provocadas pelo sentimento de não cumprirem contratos e obrigações. Dir-se-ia que todas as formas mentais e vitais encarnadas nos conceitos de honra e vergonha estão a esvair-se, igualmente, no sistema partidário porque muitos actores não têm o sentido da medida preferindo a vitória efémera à consistência do carácter. Ora, o medo pode conduzir ao triunfo de populismos senão plenamente securitários, pelo menos musculados, a colocarem em perigo a convivência e expressão do pensamento. A liberdade, certamente, ficará diminuída e condicionada. As eleições europeias estão à porta, os indicadores de intenções de voto fazem aumentar o medo. Só os desavergonhados, pescadores em águas turvas e tontos não o sentem. Apuleio disse: se os tontos voassem não se via o sol. Precisamos de ver e sentir o sol, temos de dissipar o medo exercendo a cidadania. Bom Ano Novo.

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3454

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