A opinião de ...

Língua Charra e Tratado do Petisco

Dois acontecimentos, com significado para a nossa terra, foram notícia em Lisboa, na semana passada: começou a ser distribuído o grande dicionário do falar transmontano e alto-duriense e foi lançado um tratado que vai para lá do petisco, ambos de autoria bragançana, que ficam bem numa biblioteca, ou, na falta dela, na cozinha.
A Âncora Editora editou, em dois volumes, Língua Charra. Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro, de A. M. Pires Cabral. São 1 174 páginas, a duas colunas ‒ em grafismo nítido, convidativo ‒,  que devemos folhear vagarosamente, de modo a provar uma fala conservada por gerações, que possuem, agora, o seu tesouro maior. É um trabalho espantoso ‒ de carinho pelas palavras e capacidade de organização, primeiro; de pesquisa, anotação e preocupações até ao derradeiro minuto, sobrelevando quaisquer outros dicionários entretanto conhecidos numa especificidade geográfica. Além de criteriosa e longa bibliografia (p. 23-37), que vem abonar a maioria dos vocábulos, importa a experiência do lugar e de uma existência, inclusive literária, que fazia de Pires Cabral o recolector certo de língua que alicerça uma cultura regional. Urge divulgar, e saudar, dedicação de décadas ao património comum.
Também forma de reforçar essa cultura, a gastronomia (com entrada da regional) tem em Virgílio Nogueiro Gomes um dos principais nomes. Foi muito concorrido o fim de tarde do dia 12, na Câmara Municipal de Lisboa, onde se lançava Tratado do Petisco e das Grandes Maravilhas da Cozinha Nacional (Marcador Editora, 231 p.), obra de peso ainda a rescender à tipografia de outros transmontanos e leve degustação nos textos curtos muito bem ilustrados. Houve apresentação pelas prefaciadoras, Maria de Lourdes Modesto (com 83 anos escorreitos) e Simonetta Luz Afonso, ambas invocando antigas cumplicidades com o nosso Historiador da Alimentação, um Mestre de sabores e demais sentidos, como provam as fotografias, vinhetas e texturas do papel, que tornam este objecto verdadeiramente apetecível. Foi bom rever Amadeu Ferreira, Armando Fernandes, Justa Nobre, Luís Cangueiro, Maria do Loreto, Nuno Aires ou a sobrinha Mariana Gomes, entre outros.
O Salão do Arquivo Municipal rivalizava, em assistência, com os lançamentos de José Saramago. Isso significa, para lá do número ‒ desde logo, há um percurso profissional e docente de alguém cujo mediatismo não é de circunstância, mas fundado em saber e mérito unanimemente reconhecido. Algumas imagens biografam, entretanto, a proximidade e calor humano do Autor, que discorre por séculos e geografias como se conversasse sentado num escano, à lareira, o fumeiro por cima (p. 196), surpreendendo-me com um guisado de polvo à mirandesa (lá vem a posta, sim), que eu não conhecia. De outras memórias se faz uma existência, como ler, das 21 receitas, a dos dormidos de Bragança (p. 214), que minha Mãe tinha ao lado do folar, mas sabendo que eu não me pelava por eles. Fui sempre biqueiro… Estas páginas são, assim, também, um pouco da história de cada um de nós.

Edição
3448

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