Cidadania e cidadanias
Nas últimas semanas, falou-se e escreveu-se muito sobre Cidadania, tanto a propósito da morte de Odair Moniz como da intenção do Governo de alterar algumas rubricas do Programa escolar da disciplina de Cidadania.
A propósito do presumível assassinato do luso-cabo-verdeano Odair Moniz, pôs-se em evidência o conflito entre cidadanias: a portuguesa normalizada e as portuguesa e luso-estrangeira «ghettizadas», das periferias urbanas.
Este conflito coloca frente-a-frente dois conceitos de cidadania: o da maturidade do estado-nação, de características universais e o das raças e etnias dos bairros «ghettizados», de características variadas, que se diferencia do primeiro pela raça, pela cultura, pelo menor poder económico e pela menor inclusão sócio-política nas dinâmicas sociais.
A paz social e política do Estado-Nação (1850-1960) baseou-se na homogeneidade das cidadanias nele presentes. A partir do início da diferenciação racial, étnica e cultural da população (pós-1960), emergiram os problemas de convivência entre cidadanias.
O que define o conceito de cidadania é um conjunto de características culturais, sociais e políticas enxertadas numa nacionalidade, num conjunto de deveres e num conjunto de direitos. Mas quando estas características se associam a raça e a etnia potenciam a formação de cidadanias disjuntivas. À medida que as características biológicas e étnicas da população se diversificaram procurou-se excluí-las da definição do conceito de cidadania, mascarando a existência delas.
No entanto, elas continuam a existir dando vida a diferentes formas de viver a cidadania, mesmo no interior das pessoas nacionais de cada país, dando origem a conflitos de vivência de padrões culturais, de valores, de religião, políticos e de participação e integração cultural, social e política.
Tem-se proposto que uma mesma educação, um mesmo rendimento económico e o mesmo acesso à participação social e política criarão as condições para a homogeneização das cidadanias. Porém, a realidade tem desmentido este princípio voluntarista porque os padrões culturais de cada cidadania são de ordem valorativa e afectiva, portanto, mais difíceis de assimilar pela cidadania dominante e tem-se verificado até o movimento oposto, o do incremento da oposição, fomentando a emergência de comunitarismos de ordem racial, étnica, cultural, religiosa e política conducentes a processos de autonomização social e política dentro do Estado pondo em causa a cidadania dominante neste, não reivindicando uma cidadania de igualdade mas antes de dominação.
Daqui se conclui que há muito trabalho a fazer para se construir uma cidadania integradora de cidadanias diversas e de paz social a partir do diálogo e do provimento de condições necessárias à integração. Mas também é necessário pensar que este movimento pode pôr em causa os mesmos direitos para muitos autóctones do Estado que, estando em privação económica e social, podem sentir-se marginalizados por um Estado que apoia cidadãos-outros e se esquece dos seus.
Quanto às querelas em torno do programa escolar da disciplina de Cidadania, elas evidenciam que, mesmo no seio da cidadania nacional, os valores e características culturais, sociais e políticas de cada classe social entram em confronto quando se trata de conformar e de transformar comportamentos, em acordo com cada concepção de cidadania subjacente, transformando a Escola numa arena de luta social e política.