A opinião de ...

O LODO E AS ESTRELAS - II

Leio atentamente o texto do Ernesto Rodrigues na última edição do Mensageiro e assaltam-me recordações quase cinquentenárias. Ia quente 1975 sobretudo o verão, em brasa. Começava a praga dos incêndios florestais e experimentava-se a chaga do radicalismo político. Tal como ele também eu deveria ter entrado nesse ano para a Universidade mas a “obrigatoriedade” de passar pelos “Cívicos” levou-me de volta a Bragança e a acampar no S. João de Brito que eu conhecia de outras andanças. Quase irreconhecível o velho edifício amarelo ocupado por uma quinta divisão em funções de alfabetização. Ocupava a parte nobre do antigo colégio e encontrei abrigo numa das antigas camaratas que compartilhei com um refugiado chileno que me contou a sua versão da revolução protagonizada por Salvador Allende. Queria fazer de mim comunista à força pois que, segundo ele, se assim não fosse, se a revolução não se encaminhasse sem recuo pelos caminhos do socialismo, o destino de Portugal seria, inevitavelmente o de um segundo Chile! Simpatizava com a pessoa, mas incomodava-me a insistência.Sobretudo em paredes meias com militares cabeludos e barbudos que entravam e saíam com ar poderoso nos seus gipes verdes enchendo o pátio das minhas antigas brincadeiras, com o negro fumo de diesel. Cabeludos e barbudos era o que mais havia em Bragança. Cabeludo era eu também, mas a barba teimava em não aparecer para além de uns pelos ralos que me enfeitavam o queixo por baixo de um arremedo de bigode. Cabeludo e barbudo era agora o Ernesto. Quase nem o reconheci. Andava eufórico. Tinha adaptado a obra do padre Telmo Ferraz para teatro e ia estreá-la no Liceu de Bragança que ambos frequentáramos até Junho de 1974. Eu desconhecia a obra. Estranhou o Ernesto a minha ignorância mas deu-me o livro em tons de azul escuro e negro com pequenas estrelas amarelas. Nesse dia esqueci-me do golpe de Santiago, do roncar das chaimites e da entrada e saída contínua dos latino-americanos que subiam a rampa do S. João de Brito. Encostei-me à parede velha e suja, sentado no colchão de espuma cedido pela Guarda Florestal (salvo erro) e só me enrolei no cobertor altas horas quando terminei a leitura. Fui ter com o Ernesto no dia seguinte. Claro que era impossível poder entrar na peça a estrear dali a pouquíssimos dias. Mas a generosidade do meu velho amigo, descobriu um espaço para me colocar à frente do pano do palco a dizer o “Correio” do Manuel Alegre. Foi o meu oásis! Inesquecível!
O Ernesto seguiu a sua digressão teatral pelo distrito. Eu fui para Macedo fazer reservas de perdizes!

Edição
3437

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