Bragança e as Coisas com Categoria: A sacristia fantástica – e tão real
Portugal é muito assim: durante o tempo do Marquês ou no tempo dos liberais, ai de quem dissesse bem de D. João V; nos tempos de hoje, ai de quem diga bem das coisas da Ditadura, do Estado Novo, de Salazar ou de Marcelo; desde a Restauração de 1640, ai de quem diga bem dos Filipes! – e poderíamos continuar com mais exemplos! Mas todas as épocas têm as suas coisas boas e más e, sobretudo, todas as épocas são dignas de respeito, mesmo as mais difíceis, porque nelas houve muito heroísmo anónimo, íntimo e sem espalhafato, para as ultrapassar.
Dizer mal ou bem para se ser politicamente conveniente, tem consequências desastrosas para a verdade, o património e a história, sobretudo se acompanhado do martelo iconoclasta da mania de desfazer para fazer em substituição. É uma forma de hara-kiri dum povo: destruir-se a si próprio ao destruir as obras dos antecessores duma geração ou mais. Pecha muito portuguesa, a de destruir e substituir, a de mudar os nomes das ruas e dos monumentos, a de tentar fingir que a História só começou num ponto e num dia, sem antecedentes!
Felizmente que há coisas que escapam. Nem todas as pedras de armas dos Távoras foram picadas, nem todos os seus genes extintos, nem todas as obras foram destruídas, quer as do tempo dos reis quer mais antigas, até mesmo as dos jesuítas. E destes últimos, uma das mais extraordinárias que nos ficou, porque muito representativa da sua génese e catequese – para além do seu valor como arte – é a da sacristia da igreja do Colégio Jesuíta de Bragança, a “sacristia da Sé”, para usar da gíria familiar por que ficou conhecida desde o século XVIII.
O programa radica no siglo de oro espanhol e nós embarcámos nesse siglo de oro durante a união das duas coroas, no tempo dos Filipes. A importância desta coisa de grande categoria de Bragança, o conjunto pictórico e escultórico da Sacristia dos Jesuítas, é transcendente. Cultural e religiosamente considerando.
Naquele Inácio de Loyola está um pouco de todos nós, afinal, na atitude de revisão da nossa vida que fazemos tantas vezes, consciente ou inconscientemente. Poderemos não conseguir o desfecho da sua, mas a tentativa já vale, mesmo que seja a dum fugaz remorso, como centelha de que um dia pode resultar um fogo interior.
Visitar a sacristia, de pé a ver as tábuas esculpidas e pintadas à nossa volta, leva-nos a uma consideração séria sobre o facto de que milhares e milhares de pessoas já ali estiveram, em muitas e diversas circunstâncias, a olhar para as mesmíssimas cores e a reflectir com mais ou menos profundidade nas mesmíssimas aflições ou ideias. Desde há trezentos e tal anos. E a actualidade das dúvidas, das perguntas e das respostas que, então, passou pelos espíritos e, agora, pelas nossas cabeças, é a mesma. Afinal, o que é que andamos cá a fazer? De onde vimos? Para onde vamos? Vale a pena ganharmos o mundo inteiro se….?
Acontece aos melhores, ter estado na sacristia, vista de olhos, sair de lá, atravessar para um café ou copo no Chave d’Ouro e, ao repassar de memória as imagens, formas e cores daquele aposento em que mergulhámos 3D, surgirem as dúvidas sobre o que se viu. Seria Santo Inácio? Não era o São Francisco que…? Francisco, qual, o de Assis e não o Xavier? E depois?
Para os sabichões, há um artigo completo com pistas e respostas a muitas dessas dúvidas, de Luís Alexandre Rodrigues, e que está online: O Buril e a Paleta, Santo Inácio de Loiola nas Pinturas da Sacristia da Igreja dos Jesuítas de Bragança.
Para os não tão sabichões mas curiosos, fica a deixa de in loco verem, com a disposição de se deixarem surpreender por quem idealizou, esculpiu e pintou aquela arte intemporal que, hoje, nos perfila tão perplexos como a quaisquer uns nos séculos antes de nós.
Para os nem sabichões nem curiosos, basta um entrar e sair. Mesmo que só a achem fantástica, a sacristia ficará, a partir daí, a ser-lhes real. Muito real.