A revisão constitucional: entre o medo e a oportunidade
Portugal, país de brandos costumes, assiste hoje a uma dança política curiosa, com os seus protagonistas a esbracejar no palco da democracia, cada um tentando agarrar a melhor posição para o espectáculo que aí vem. As últimas eleições legislativas, numa ironia quase histórica, deram à direita parlamentar — PSD, CDS, IL e CH — a inédita possibilidade de rever a Constituição sem precisar da bênção do PS. Sim, a Constituição, esse documento sagrado que tantos tratam como um novo Antigo Testamento, está agora, pela primeira vez, à mercê de quem a esquerda gosta de apelidar de “reaccionários”.
E, claro, o pânico instalou-se. A IL, sempre à procura de um protagonismo que teima em fugir-lhe, foi célere a afirmar que uma revisão constitucional não deve ser temida nem encarada como uma ameaça aos direitos adquiridos ou às conquistas civilizacionais, mas antes uma oportunidade para expurgar do texto as marcas de um projecto de sociedade socialista e de uma economia colectivizada. O Livre, essa seita pós-moderna com tiques de moral superior, clamou contra o risco de uma reversão autoritária, como se estivéssemos a um passo de um golpe de Estado. E o Chega, esse animal político à solta, viu na situação a oportunidade perfeita para encurralar o PSD: ou se alia à direita, incluindo o próprio CH, ou trai o eleitorado e se refugia numa qualquer solução centrista, a reboque do PS. Tão previsível quanto eficaz.
Mas, para lá das histerias e dos jogos florentinos de poder, há uma questão mais funda que merece ser discutida com seriedade: será ou não necessária uma revisão da Constituição? E a resposta, gostemos ou não, é simples: sim, é necessária. Não porque a Constituição seja um entrave absoluto à governação — que não é —, mas porque há reformas estruturais que, sem uma revisão, pura e simplesmente não se conseguem fazer. Tomemos o exemplo gritante da redução do número de deputados para menos de 180, ou a abertura do sistema político a candidaturas independentes ao Parlamento. Quantos debates, quantas promessas, quantas tentativas goradas, tudo a esbarrar no muro da Constituição!
É verdade que a Constituição é a pedra angular do edifício jurídico do país, mas não é um dogma divino. Não é imutável, nem deve ser tratada como tal. A Constituição pode e deve ser revista quando necessário, desde que se respeitem os limites que ela própria estabelece: o respeito pelas liberdades fundamentais, pela forma republicana de governo, pela separação de poderes, pela autonomia local, pelos direitos dos trabalhadores, entre outros. Esses são os pilares inegociáveis. Mas o resto? O resto pode — e deve — ser discutido, alterado, modernizado.
O medo de uma revisão constitucional é, no fundo, o medo de perder privilégios, de quebrar rotinas, de sair da zona de conforto. É o medo de reformar a sério. O PSD, que gosta tanto de se apresentar como um partido reformista, tem agora uma oportunidade histórica para provar que não é só conversa fiada. Tem a oportunidade de libertar a sociedade civil, de criar condições para uma economia mais livre, de garantir que o Estado presta serviços de forma eficaz e eficiente. Tem a oportunidade de ajustar a Lei Fundamental aos desafios do século XXI.
Se o PSD não for capaz de agarrar esta oportunidade — e de a agarrar com coragem —, então que se cale de vez com a conversa da reforma. Porque, mais do que nunca, o tempo das palavras acabou. O país precisa de acção. A História não espera por quem hesita. E Portugal também não.