A opinião de ...

O poeta João Rodrigo

O final de 2022 fechou os olhos a figuras ilustres – o Papa emérito, Pelé –, mas, dias após um funeral de que soube pelo Carlos Pires, sofremos por João Rodrigo, recordado em velhas cumplicidades nascidas no Mensageiro de Bragança (MB).
Não verifico agora, na emoção do momento, o que sobre ele escrevi no semanário Tempo (Lisboa), em 25 de Janeiro de 1979. O artigo intitulava-se “Liberdade: a cor do homem”, e nesse tom o vejo, no dizer libérrimo, antes e após Abril de 1974.
No MB, sobretudo na Tribuna dos Novos, dirigida por Carlos Pires, convivemos desde 1971, ele, mais velho, nascido em Castro Roupal, Macedo de Cavaleiros, em 1945. Aí inseriu, durante anos, assinando Rojo, Castilhão da Pena ou em nome próprio, medidos sonetos, ritmadas quintilhas, etc., ora de teor introspectivo, ora instigando os poderes públicos a olharem para maleitas da cidade (30-7-1971). Ao lado de um meu “Poema do medíocre”, há, dele, “Quod est, est”, nesta demanda por que se norteou: «Retido no meu beco sem saída, / tentei fazer da sombra claridade: / despi os preconceitos desta vida / e, nu, fui ao encontro da verdade.» (12-1-1971)
João Rodrigo – áspero na denúncia da «fartura de míngua» transmontana e nessa interlocução com a Liberdade –, é o primeiro de quatro nomes num projecto que ideei em 1975, a antologia J. C. Falhou Um Penalty. Entregue a composição aos Salesianos de Izeda, donde era um dos quatro parceiros, Raul Morais (também já partido), os vinte poemas deste e do João Rodrigo são compostos. A máquina emperra nos do Carlos Pires e em dois meus: o soneto donde sai verso-título; um segundo, de Lisboa, 10-XI-1974, escrito no autocarro 45, do Cais do Sodré à Rotunda da Encarnação, que ainda jaz no seu papel higiénico. Duvido que tenham gostado da poética inscrita a abrir o meu apartado: «Deus = direcção para o Bem. Poesia = lira + lata + luta.» E duvido que haja livro como este, em que recorremos ao chumbo móvel da Tipografia Académica, na Rua Direita, em Bragança, para compor os censurados e colá-los no devido lugar. Estou a concluir a caloirice da Faculdade, em Junho de 1976, quando me chegam exemplares, que vendo no chão dos Restauradores ou na estação do Rossio.
A selecção de João Rodrigo é excelente, mas outros ficaram de fora (decerto com a Matilde), incluindo impressos no MB. O seu propósito vem neste limiar: «Por uma terra por uma luz / com força para amanhecer / para que a pena deixe de ser cruz / de tantos que calam o que é de dizer». Casam-se monte e manhã «batida pelas fronças dos giestais» no recebimento da «verdade diferente», quando só uma verdade perigosamente repicava. Há sempre uma toada, por vezes anaforizante, ao cantar a amizade e o amor, mas também nos avisos da conjuntura política: «Olhai as moscas soltas na cidade / As moscas que nos cravam / qual raio venenoso / rachando a espinha dorsal da liberdade // Olhai as moscas!», etc. Ficou célebre em algumas memórias uma “Oração do dia a dia”: «Deus / nos livre / das moscas varejeiras / e daquelas / que / sem hábito / são freiras!»
Eu gostaria de ver incluído um soneto saído no MB em 29-10-1971, cujo título ressoa hoje estranhamente: “Nasci, vivi e venci”. Não só o grande César vem, vê, vence; o poeta, também, resumido nesta autopsicografia de uma existência, contada aos 26 anos: «Nasci do cais do abismo e da pobreza / e, por meus próprios meios, consegui / tirar o turvo pano da tristeza / de volta dos meus olhos. Ressurgi // Para a vida que me era de incerteza; / rasguei íngremes trevas e venci / caminhadas ao Sol de hostil rudeza, / que, com suor de sangue, destruí. // Tão cara que me fica a minha história! / Por isso, às vezes, penso e estremeço, / por não crescer afeito a qualquer glória. // E se, na vida, agora reconheço / sorrirem-se os despojos da vitória, / não vai além do quanto lhe mereço.»
A glória dos artistas cala no coração de amigos, que devem ecoá-la.

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3917

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