Ecoando a Fratelli Tutti (I)
É significativo que o papa tenha adotado, do Poverello de Assis, não apenas o nome, mas as expressões. Iconograficamente, até as expressões que dão o título a duas das suas três encíclicas: Ladato Si e Fratelli Tutti.
No ano letivo passado, pude conhecer mais de perto os discípulos de São Francisco, ao ser acolhido no Seminário da Luz, em Lisboa. Simplesmente, uma experiência salvífica. Ali pude comprovar que as comunidades franciscanas não se chamam comunidades, mas fraternidades. Tinha chegado à fraternidade da Luz! E os superiores não se chamam superiores, mas guardiães. O superior da casa é o guardião da fraternidade. Esta terminologia diz tudo o que o papa Francisco sonha. Note-se que esta encíclica é uma encíclica impregnada de sonho. Encíclica do sonho, não da utopia. O papa sonha com um mundo no qual cada um seja agente da fraternidade com governantes que sejam guardiães da fraternidade. Escreve ele: «Entrego esta encíclica social como humilde contributo para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras» (6).
Para, refletindo, adentramos nas várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros e nas diversas maneiras possíveis de reagir, Francisco abre diante de nós o Evangelho, exatamente na página do Bom Samaritano. Ele pretende que, olhando para as feridas e as doenças do mundo atual, não passemos ao lado, mas nos impliquemos na cura e na salvação de todos: «hoje, ou nos salvamos todos ou não se salva ninguém» (137). Particularmente, neste contexto sanitário, «a pandemia do Covid-19 despertou, por algum tempo, a consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco, ficando a descoberto, uma vez mais, esta (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos» (31).
Para o pontífice, quem é este homem meio morto, espancado, ensanguentado, que se encontra à margem, na borda do caminho? É, em várias circunstâncias, a sociedade hodierna. O papa faz questão de mostrar rostos concretos, os espancados da nossa sociedade, por causa de culturas com mãos ensanguentadas. O rosto dos migrantes, o rosto dos idosos, o rosto dos deficientes, o rosto de algumas mulheres, o rosto dos escravizados da atualidade. Estes rostos são feridos por causa de uma certa cultura política, de uma certa cultura de globalização, de uma certa cultura económica, de uma certa cultura digital, de uma certa cultura do cancelamento. Culturas insufladas do espírito da agressividade e da indiferença. Não bastavam os golpes da agressividade dos salteadores, que ainda sobrevêm os golpes da indiferença. Ou seja, agressividade sobre agressividade, formando um círculo de destruição completo.
O sonho de fraternidade universal e de amizade social que Francisco tem para a nossa história presente e futura acontece, assim, na noite de um mundo fechado. Sobre este sonho, que o papa expõe corajosamente, escreverei nos próximos tempos, antes, ordenarei a citação de uma série de frases, que, desejo, sejam eco e incentivo à leitura desta bela, multicolor e artística, manta de trapos do pensamento social de Francisco.