A opinião de ...

Por uma (nova) Antropologia

A resposta para a problemática antropológica actual deverá passar por uma mudança de pensar e de sentir do Homem e da Humanidade, como partes integrantes no todo da vida e como co-responsáveis para o justo equilíbrio entre Natureza e Homem e entre o Homem e a Humanidade.
No entanto, a cultura dominante tem procurado esforços para impor uma certa visão ideológica denominada de transumanidade. Assente essencialmente numa visão mecânica ou mecanicista, isto é, nas dimensões biológicas, informáticas e tecnológicas da existência, a transumanidade esquece-se do lado ético, cultural e social do Homem e da Humanidade. É curioso o facto de vermos crescer na sociedade actual o gosto pelo passado e pelas tradições, o revisitar memórias e sabores antigos. Pessoalmente, deparo-me com uma busca de autenticidade e de unicidade por parte da sociedade. Senão, vejamos: uma crescente procura por alimentos biológicos e de origem protegida; a consciencialização colectiva em ordem a uma sustentabilidade ecológica; a procura das nossas raízes como busca de percepção e compreensão sobre o nosso lugar na comunidade e na História; no catolicismo denota-se um caminho (talvez saudosista!) pela liturgia antiga; e, a sociedade revela a sua sede de espiritualidade como não se via e em que vemos crescer – quase como cogumelos – homens e mulheres (gurus, coachings, mentores e afins) a prometer a felicidade e a realização pessoal. No fundo, hoje há essencialmente uma perda de sentido e de significado. Há que o dizer: o Progresso falhou como proposta de sentido e de significado, mas, positivamente, permitiu melhor qualidade de vida e melhores condições à Humanidade. Convém, todavia, afirmar que a técnica é vital para a subsistência humana. Sem ela não haveria nem evolução, nem desenvolvimento.
Necessitamos para os tempos hodiernos de um novo, de um renovado e de um revigorado Humanismo. Incansavelmente, a Santa Igreja tem procurado encontrar formas de tocar o coração dos Homens, consciencializando-os para uma conversão interior e exterior que passa, invariavelmente por uma mudança ôntica e existencial, e por uma mudança de estar e de ser na comunidade, com os pares e com a Natureza.
Nesta ordem de pensamento, a visão de Homo Misericords do Padre Manuel Antunes é uma síntese, clássica e taxativa, da antropologia bíblica. Daí a urgência de restaurarmos a beleza epistemológica e conceptual do termo “misericórdia”. O Padre Manuel Antunes recorda que o termo Misericórdia provém da junção de dois étimos latinos “mise-ricordia” e que indica “à raiz, um movimento do coração – do coração tido como o símbolo e o órgão central da afectividade – provocado pela desgraça alheia”. Mais, a Misericórdia é, na sua essência, “interiorização do outro na subjetividade afectiva e é exteriorização do sujeito, reveladora dessa presença efectiva, em multiplicidade de manifestações. É um “in” e é um “ad” – um «em» e um «para» –, duas preposições indissoluvelmente unidas, até à simbiose, através do «vínculo substancial» – ousaríamos leibnizianamente dizer – de uma afectividade desinteressada, investidora do outro, enquanto o respeita na sua própria alteridade de pessoa”.
Compreendemos que não pode e nem deve haver uma divisão ou um dualismo antropológico pautado por um pensamento binário de “homo mechanicus” ou “homo misericords”. Ou, pior, por uma primazia do “homo mechanicus” em detrimento do “homo misericords”. Na verdade, eles não são contrários ou antagónicos. Antes, ambos se supõem e se implicam.
Por isso, a Humanidade necessita de um humanismo regenerado e assente na “civilização do amor” (São João Paulo II). É desta forma que cada um de nós pode – como afirma Walter Kasper (cardeal e teólogo) – “contribuir para a humanização da sociedade e do sistema social. Numa palavra, para que o nosso Estado tenha alma”.
A Misericórdia é, na verdade, o pêndulo e o garante para e de um Humanismo que se quer (e que se exige!) mais autêntico, mais integrante e integrador, mais ético e mais altruísta, capaz de promover e, acerrimamente, defender a pessoa humana e a sua inalienável dignidade, desde a concepção até à sua morte natural. E aqui está o mais importante desafio dos tempos de hoje.

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