A opinião de ...

O imperialismo do eu

A morte de George Floyd, por um lado, e as reações violentas à mesma, levam-me a uma análise destes comportamentos sociais no quadro dos conflitos ao longo da História da Humanidade.
A causa próxima da morte de George Floyd foi a eventual utilização duma nota falsa de 20 dólares numa compra de tabaco. A Filosofia, porém, ensinou-me a procurar a explicação para os fenómenos científicos através da busca das chamadas causas últimas. E, neste caso, a sua causa última nem foram os 20 dólares, nem tão pouco o racismo, mas o egocentrismo do polícia, que o leva a autorrepresentar-se como o padrão dos direitos e do poder, e a criminalizar o outro que não encaixa nos modelos do seu narcisismo. De igual forma, a destruição surgida nalgumas manifestações, supostamente antirracistas, são a expressão dum similar egocentrismo dos manifestantes envolvidos.
Estes egocentrismos encaixam no complexo que podemos classificar de “imperialismo do eu”, para usar uma expressão já usada por Sartre e Levinas, ou, até, eventualmente, de egolatria, porque alguns autorrepresentam-se e agem como se fossem verdadeiros deuses a quem os demais devem prestar culto e vassalagem. Para quem sofre deste complexo “imperialista”, o Outro ou é submisso, e aceita a superioridade do “imperador”, ou é “inimigo”, sendo criminalizado e transformando-se num alvo de ódio e agressividade verbal e até física, quando necessário e possível.
O imperialismo do eu, nas relações sociais, é mais frequente do que parece, levando-nos sempre a ver os defeitos dos outros, mas a não ver os nossos e, até, nalguns casos, a transformá-los em virtudes. A História está repleta de exemplos destes, ao longo dos séculos. Para não irmos mais longe, analisemos os principais conflitos políticos do século passado, todos eles à volta de 3 modelos políticos de governação: as ditaduras de cariz militar/fascista, as ditaduras ditas comunistas e as democracias parlamentares.
No seu excelente livro «Fascismo – um alerta», Madeleine Albright recorda, duma forma brilhante, como os regimes comunista e fascista se instalaram um pouco por todo o mundo, mas sobretudo na Europa. Tanto nos países fascistas como nos países comunistas, a governação assentava na concentração de todo o poder do Estado nas mãos dum indivíduo ou dum grupo social minoritário, na eliminação da oposição e da liberdade de imprensa. A oposição era proibida e criminalizada e os ditadores eram endeusados.
A queda do muro de Berlim, porém, fez nascer a convicção de que as ditaduras comunistas teriam os dias contados. Todavia, se isso parece verdade na Europa, não o é na China, na Coreia do Norte, em Cuba e na Venezuela, por exemplo.
Por outro lado, com a derrota, na década de 40, da Alemanha nazi, de Hitler, do fascismo italiano, de Mussolini, e o colapso dos extremismos salazarista e franquista, na década de 70, muitos pensaram que a extrema-direita desaparecera por completo do panorama político-partidário dos países desenvolvidos.
Passadas algumas décadas, porém, vemos uma onda de tentativa de afirmação dos mesmos valores que assentavam no “imperialismo do eu” dos líderes da extrema-direita fascista ou nazi, tanto na Europa como nas Américas. Trump e Bolsonaro conseguiram, mesmo, chegar ao topo do poder nos seus países, apoiados por eleitores que parecem encantados com o discurso de ódio contra os seus opositores, como é característico de todos os ditadores.
Também em Portugal começam a surgir sinais de que não podemos dar como garantida a democracia, até porque homens imperfeitos tornarão sempre imperfeito qualquer modelo perfeito. No entanto, se é verdade que, até nas democracias, o egocentrismo e o “imperialismo do eu” têm o seu espaço, não deixa de ser menos verdade que a democracia tem ferramentas que faltam às ditaduras: a emanação do poder político do voto livre dos eleitores, a pluralidade dos partidos e a igualdade de todos eles perante a lei, a que acrescem a liberdade de expressão e de imprensa e a separação dos poderes legislativo, executivo e judicial.
Concluindo, direi que a verdadeira causa do racismo do polícia que matou Floyd, assim como a causa dos excessos dos manifestantes antirracismo, e ainda a causa última das ditaduras é sempre a mesma: o imperialismo do eu dos seus autores.

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