As Pandemias e a evolução do Direito
Como já aconteceu ao longo da história, com a pandemia Coronavírus (corvid-19) a nossa sociedade vai sofrer muitas alterações sócio/económicas. O homem é o único ser vivo que consegue manter relações de confiança, amizade e conflitualidade com outros homens que não conhece em qualquer parte do mundo, como escreveu Yuval Noah Harari, no seu livro “Homo Desus”. Para tanto, o homem criou uma infinidade de rotas globais, em todos os sentidos, por onde transitam pessoas e mercadorias, ideias e religiões, crimes e virtudes, milhões de vírus e pestes. As pestes provocam novos rituais entre as pessoas, fazem surgir novas actividades económicas e profissões e até alteram as leis. No campo do direito, refiro dois exemplos: na Europa, a partir do sec. XIV, a peste negra pôs fim ao feudalismo e a aplicação do direito da enfiteuse modificou a exploração e ocupação das terras senhoriais.
No Sec. XIV, três grandes flagelos contribuíram para o fim do feudalismo (regime feudal) – um sistema económico/jurídico que ligava o servo da gleba (trabalhador da terra) ao senhor feudal (dono da terra) –: a peste negra, a fome e a guerra. O servo da gleba estava ligado à terra e subjugado ao cumprimento de muitas obrigações para com o seu senhor feudal, os chamados impostos feudais: Imposto da talha (1/3) de toda a produção agrícola; taxa de justiça (julgamento no feudo pelo senhor feudal); formariage (casamento do servo da gleba fora do feudo); corveia (trabalho gratuito para o senhor feudal), anúduva (trabalho na construção ou reparação das muralhas do castelo) e muitas banalidades (imposto pela utilização obrigatória dos bens do senhor feudal, como uso do forno do pão e da telha, lagares do vinho e do azeite, água do chafariz, etc). O servo da gleba não era um escravo, mas estava ligado à terra e ao senhor feudal sendo obrigado a executar muitos trabalhos não remunerados.
Durante o período da peste negra no sec. XIV, segundo os historiadores, morreu mais de 1/3 da população da Europa; desapareceu a maioria dos servos da gleba, por estes serem os mais vulneráveis à doença e à fome. Os senhores feudais para manter as suas actividades aumentaram os impostos sobre os servos da gleba que estes não conseguiam pagar. Em consquência, os servos da gleba iniciaram várias revoltas que, em muitos casos, culminaram com a morte dos senhores feudais. Assim, devido à falta de mão de obra provocada pela peste negra na Europa principiou o fim do feudalismo e começou a ressurgir a enfiteuse como outra forma de exploração da terra, também vulgarmente conhecida por emprazamento ou aforamento.
O direito da enfiteuse foi prática usual no Direito Romano e constava do Código Justiniano (sec. IV DC), como um “arrendamento de prédios por longo prazo ou perpétuo” que tinha em vista prender o cidadão à terra de onde não podia ser expulso enquanto pagasse a renda. Do Código Justiniano “transitou” para o Livro 4º de todas as nossas Ordenaçoes Afonsinas, Manuelinas e Filipinas. A Coroa Portuguesa chegou a impôr o direito de enfiteuse durante a colonização do Brasil e também obrigava os proprietários a aceitar nas suas terras incultas os lavradores que queriam cultivá-las mediante o pagamento de uma renda. O senhorio, titular do domínio directo, não detinha quaisquer outros direitos sobre o enfiteuta, titular do domínio útil, a não ser exigir o pagamento da renda fixada na data do contrato constitutivo do direito da enfiteuse.
Mantendo a tradição romana, a enfiteuse, como um direito real, ainda estava prevista nos artigos 1.491º a 1.523º do Código Civil de 1.966; só foi revogada pelo DL nº 195-A/75 de 16/03 e DL 233/76 de 02/04, “por já não ter qualquer função social útil”, e “para apoiar e libertar os poucos pequenos agricultores”, como consta do preâmbulo destes diplomas legislativos.
Tentei explicar, sumariamente, como o feudalismo desapareceu na Europa após a peste negra e como depois ressurgiu o direito da enfiteuse, como formas de exploração da terra. Também o coronavírus irá causar outras formas de convivência social; esta crise sanitária depressa se confundirá com uma crise económica; depois, outras leis virão para novas relações jurídicas: teletrabalho, teleensino, televendas, tele... e muitas actividades e outras profissões que tanto podem ser exercidas na aldeia de Montezinho como em Paris ou Macau e... Talvez surjam novas oportunidades para povoar zonas do interior de Portugal.