A opinião de ...

Ponto-Morto…

Nos meus felizes anos, na infantil meninice, ali pela instrução primária, no Felgueiras que me viu nascer com a imponente bênção do Monte de Santa Quitéria, o mundo sorria pois que me sentia livre como os pássaros, a vida era risonha e airada.
Meu pai, guarda-livros de profissão, comprou e geriu com esmero o único jornal, na altura, do concelho. Cresci entre letras de chumbo, cheiro de tintas, máquinas esquisitas e perigosas de cujas entranhas surgiam silvos metálicos que transporto no imaginário. Das sobras de papéis coloridos a rapaziada envolvida construía papagaios que encantavam os céus misturados com os voos rasantes das andorinhas primaveris.
Um dia, mas que dia, um Ford preto, a sério e com motor, foi apresentado à família, minha mãe trespassou-se. A cena quase real acorda-me muitas vezes, feliz acordar, o carro circulava com motorista, meu pai ao lado, e eu saltava de alegria no, só meu, assento traseiro. A viagem era estonteante, de Felgueiras a Sedielos, aldeia encravada nas serras, ali muito perto de Mesão Frio, nas fraldas da Fraga da Ermida, inspiradora do célebre romance de Guedes de Amorim, A Aldeia das Águias. Caminhos de arrepiar, vertentes onde moram os medos, curvas sem compasso, nevoeiros filhos de nuvens medonhas, Cavalinho e Padronelo afrontando os demónios, mas a chegada ao destino glorificava, era vitória: a Quinta estava à vista, estendia-se mansa por enorme vale, viviam ali em amena cavaqueira a vinha, o milho, as batatas e as aguas, sei que eram as outras miudezas que faziam as delícias de minha mãe, tomates, alfaces, couves, coelhos, galinhas e ovos.
Um dia, no topo daquele soberbo mar de pedregulhos, o enorme Marão, ao iniciar a vertiginosa descida para Vila-Real, meu pai ordena, agora vamos por conta do Salazar, desengate, coloque em ponto-morto. Muito mais tarde a vida se encarregou de me elucidar sobre aquele mistério, decifrou-me o enigma. O carro andava mas, verdadeiramente, é como se estivesse parado.
Volvidos todos estes anos, longe dos tempos onde nos construímos, agora envolvido nas angustias que a todos nos sufocam, ao contornar os pedregulhos colocados não pela natureza mas pelos homens, dou-me conta do ponto onde nos encontramos.
Pertenço definitivamente, em termos políticos, à esquerda democrática, com rumo assente na liberdade, igualdade e fraternidade. Fiquei feliz e apreensivo pelo triângulo amoroso que descaiu para casamento, sem aliança nos dedos, entre PS, BE e PCP. Nesta relação a três, em trigamia, o cabeça-de-casal é o responsável, sustenta a família, os outros vivem sem preocupações com a cobertura dos gastos.
Regresso à infância, aproveito os ensinamentos do passado, brinco ao faz de conta, no carro viaja o casal improvável, de esquerda, ele de motorista e as duas esposas, aparentando sonsice, exercem violência doméstica, dão palpites sem responsabilidades. Tendo carta mas não querendo guiar, elas mexeram na alavanca e o carro, o país, avança de facto, mas como parado. Tenho a sensação de que, por brincadeiras esquerdinas, atirando para os tempos de Salazar, o país desliza mas, a esquerda me perdoe, neste momento Portugal parece caminhar para o Ponto-Morto.

Edição
3613

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