A opinião de ...

Folar simples

A receita dactilografada em papel timbrado – Escola Comercial Azevedo e Silva, Lourenço Marques – chegou-me na companhia de outras, amável oferta de senhora transmontana, orgulhosa de o ser.
Lá, na sedutora cidade hoje Maputo, nunca por nunca se esquecia de celebrar a Páscoa. A falta de alguns produtos levou-a a conceber uma receita desprovida de arroubos cárnicos tão gostosos como raros ao tempo em Moçambique.
Eis o preparado: “4 ovos, ¾ de chávena de óleo (na falta do azeite), 1 chávena (uma e meia) de leite fresco, 3 chávenas de farinha de trigo, 3 colheres de sopa rasas de pó Royal (fermento) sal a gosto (uma colher de chá), um chouriço sem pele cortado aos bocados de presunto (eu na falta de presunto uso um pacote de BACON), Atenção: se o presunto for salgado deita-se sem o sal.”
Analisando-se a receita logo verificamos as diferenças relativamente aos nossos folares, o tamanho era pequeno, o essencial reside na intenção de através do – folar simples – a nossa conterrânea regar as raízes da sua ancestralidade.
Obviamente, não podemos pretender retirar ilações sobre os desejos, formação e clivagens de vida da transmontana longe da terra onde nasceu e se formou, mas podemos intuir sinais de, pelo menos, saudade e respeito ante o recebido durante o seu crescimento.
A Páscoa cristã, bem como a Pessach (a Páscoa Hebraica ou Festa da Libertação) têm profundo significado simbólico para os crentes dos dois credos, daí não ter ficado surpreendido ante o documento a enunciar a receita em causa, no entanto, merece-me saliência o modo de superação das faltas essenciais à sua construção, vindo ao de cima, mais uma vez o pleno sentido do aforismo: a necessidade aguça o engenho.
Esta receita tem quase sete dezenas de anos, ao tempo os produtos não circulavam à velocidade de agora, mais a mais na longínqua colónia, só que a memória dos afectos (é moda referi-los) obrigava a trazê-los ao de cima nos dias nomeados, na maioria de festa.
A revolução tecnológica impele à rasadura das singularidades e alacridades de povos e nações, ainda mais rentes quando os filhos das terras foram obrigados a emigrar, sem esquecer o despovoamento dos redutos populacionais no nosso caso do interior.
Os nossos patrimónios imateriais e materiais estão em risco, é notória a perda no referente a linguagens, hábitos e usanças, tenderá a acentuarem-se à medida do desaparecimento das pessoas carregadas de anos, só existindo réstia de salvação através da recuperação de documentos em todos os suportes nos quais estão registados os filamentos das nossas culturas, isso o termo cultura no plural.
As três virtudes teologais são – fé, esperança e caridade – vivem na obscuridade, a nossa capacidade de memória é afectada pelo turbilhão informativo que nos leva a sacudir aos repelões o exercício do pensar nos valores inseridos nessas virtudes. A feérica cadência de todo o dia, à noite apresenta-se mais nítida impele à superficialidade considerando-se como inoportunas as recordações do passado.
Tanto a intimidade confessional da esperança, como o seu sentido da finalidade esboroam-se, ficam submersas, pela impetuosidade da avalanche do efémero, das lantejoulas da sociedade do espectáculo, atente-se na obra de Debord.

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3569

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