A opinião de ...

A Morte de Germano Trancoso

No Verão de 1968, intervalando longas férias com um retiro no Seminário de Vinhais, José Mário Leite e eu ganhámos um concurso literário – ele, com o melhor texto do primeiro ano; eu, com o melhor contarelo do segundo ano (ainda me lembro do péssimo título: “Passeio matutino”), gloríola com que passei ao Seminário Maior. Conhecemo-nos há 49 anos.
A amizade reforçou-se fora da casa amarela, quando (escrevi em prefácio à lírica de Pedra Flor, 1996) «tertuliávamos nas madrugadas de Bragança, nos cafés ou em quartos de aluguer, contra um Regime de coisas que nos abafavam. Nasceu, daí, já após Abril de 1974, aquele grito Com Um Cravo na Boca, como se intitulava a estreia dramática de José Mário Leite (1957).»
A dedicação ao «solo genesíaco», semanalmente confirmada em crónica jornalística – sem já falar na actuação do presidente da Assembleia Municipal de Torre de Moncorvo –, tem expressão maior na estreia ficcional (A Morte de Germano Trancoso, Âncora Editora, 2016), com que o autor toma lugar na ainda pouco expressiva galeria do romance regional. Somos mais ricos no minifúndio do conto, como já escrevi. Ora, as duas espécies narrativas conjugam-se com felicidade nos 39 curtos capítulos, bastantes para, assentes em títulos significativos, percebermos como encarreira esta morte misteriosa.
Assim, “A carta” da cunhada francesa, com que inauguramos, lança o problema – a morte do irmão Ramiro e do pai Germano, com que se culpabiliza o herói Gabriel –, mas, numa técnica de retenção própria do policial, a demanda deste nos calores de 1976 vê-se intercalada por recorrências da memória. Outro modo de suspender a narração, com que nos abeiramos do conto, é descrever quadros, além de retratar figuras humanas ou paisagens naturais. Um exemplo daqueles é o capítulo II, “O correio”; destas, é o cap. IX, “A senhora dona Ana” ou o cap. XII, “Fraga amarela”. Significa, pois, uma tessitura de rememoração, tipos e descrições naturais, dentro da qual se organiza a história, jamais alheada de títulos comentativos e orientadores: aqui, irmanam-se o V e VI capítulos – “Culpado de quê?” e “Verdades que não se dizem” –, enquanto motores do enredo, estando neste título o cerne da questão. Afinal, a verdade não salva? Mas, antes: o que se entende por verdade, não raro janicéfala?
As derivas desse arcanjo Gabriel – no final «caído, junto à Pedra dos Noves», enigma que também o motiva – acontecem, pois, entre rememoração, lugares marcantes e várias interlocuções. Estas confrontam hipóteses, no esforço de desencarnar a verdade (quando, ironia!, o Gabriel bíblico anunciou à Virgem a encarnação). Além dos espaços da Armandinha e do João Gato, perfila-se a taberna do Pataquim como embrião de dúvidas. Os momentos aí passados, e a atmosfera do jogo e dos diálogos, saem excelentes, só ultrapassados na visualização de espaços vistos de cima. Representação vívida de cenários, na ordem da descrição, junte-se o tempo da lembrança, em que todos os nordestinos comungamos: as brincadeiras e riscos próprios da infância; a chegada do correio, que também Raul Rêgo evocou; a fogueira de Natal; a vindima, pisa e potada de aguardente; etc.
Falta referir, todavia, a par de acenos místicos (caso da relação entre triângulo e hexágono na igreja matriz de Moncorvo), outro tipo de memória: a mítica, que move a acção. “Histórias e lendas” e vários títulos capitulares isso denunciam, se necessário fosse alertar-nos para princesa moura vertida em cobra, já não pisada pela Virgem, mas silenciando o seu anjo anunciador, numa estranha reversão. Se não quisermos ver aqui um romance de aprendizagem (é evidente que o protagonista, embora casado, adquire conhecimentos), a vitória do Mal parece contrariar a lição acima, ou seja: as verdades dizem-se, custe o que custar.
Cúpula de monumento bem cerzido, temos a linguagem, entre um léxico convergindo no melhor da nossa tradição e um imaginário de ditérios sobrevivendo na apata candea de Filipa ou na Delgorda (em vez de Delfina) inventada por João Gato. Vêm disseminados alguns achados estilísticos de mão treinada desde aquele Verão adolescente.   

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3581

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