A opinião de ...

Olhares Cinematográficos

A situação já tinha precedentes, desde o longínquo filme documental “Trás-os-Montes” (1976), de António Reis e Margarida Cordeiro, e da curta-metragem “Para Cá dos Montes” (1993), de Joaquim Pinto, entre outros, mas há uma curiosidade nova sobre esta região por parte de jovens cineastas.
Com efeito, em 2018, já se tinha estreado “Bostofrio”, de Paulo Carneiro, que acompanhava a viagem do realizador até à aldeia de Bostofrio, em Trás-os-Montes, para investigar o seu avô desconhecido.
E agora, no ano em curso, eis que surge “Alma Viva”, de Cristèle Alves Meira, realizadora luso-francesa, que regressa à aldeia das suas origens, no concelho de Vimioso, para nos contar uma história familiar, com inspiração autobiográfica.
Na verdade, o filme condensa em cerca de hora e meia, saltando entre o realismo antropológico e a ficção, vários tópicos da realidade local: a emigração, a desertificação, o envelhecimento da população, a economia de subsistência, as festas e os incêndios de verão, os conflitos de vizinhança e os laços e tensões familiares, bem como o misticismo ancestral.
Por tudo isto, assim como pelas belas imagens e as interpretações poderosas das personagens femininas centrais da história, o filme merece bem ser visto.
Além disso, para muitas pessoas será certamente uma forma de revisitar heranças culturais ou de se ver de alguma forma retratado no contexto da vivência de um pequeno povoado transmontano.
Em qualquer caso, chama a atenção que perdure ainda, na espiritualidade local, uma certa forma de xamanismo sincrético, que combina o mediunismo com crenças religiosas cristãs.
Na verdade, o xamanismo, entrelaçado com o animismo, é a forma religiosa mais antiga do mundo, que foi cruzando épocas e lugares, resistindo à irrupção e crescimento das grandes religiões monoteístas e ao advento do racionalismo científico. E, se bem que de maneira mais ou menos clandestina, foi encontrando o seu espaço para se manter no seio das sociedades humanas contemporâneas.
No caso de Trás-os-Montes, a prova disso está nas sucessivas edições do Congresso de Medicina Popular de Vilar de Perdizes, no concelho de Montalegre, que congrega diferentes atores e práticas xamânicas.
É certo que a ciência tende a desqualificar todas estas manifestações da cultura popular, arrumando-as na gaveta da “superstição” ou das “crendices”, sem lhes reconhecer valor terapêutico ou de outro tipo.
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Contudo, do ponto de vista da experiência interna, há alguns casos que merecem alguma atenção e curiosidade, na medida em que os xamãs se colocam, através da repetição de certos ritos ou práticas, num estado alterado de consciência que lhes permite experimentar às vezes, enquanto dura o seu breve transe, uma lucidez inabitual, capaz de transcender o tempo e o espaço do quotidiano e ajudar verdadeiramente quem recorre a eles.
No mundo clássico, era um mecanismo similar que usavam as pitonisas e sibilas, quando procuravam inspiração para poderem profetizar o futuro daquele que as consultava, para citar um exemplo mais conhecido [cfr. Claudie Baudoin. 4 voies de prédisposition à la divination (en Mésopotamie et dans le monde hellénistique). https://www.parclabelleidee.fr/monographies.php].
Contudo, como esclarece Silo, «os “fantasmas” ou “espíritos” de alguns povos ou de alguns adivinhos não eram senão os próprios “duplos” (as próprias representações mentais) daquelas pessoas que se sentiam tomadas por elas. Como o seu estado mental estava escurecido (em transe), por terem perdido o controlo da Força, sentiam-se manejadas por seres estranhos que às vezes produziam fenómenos notáveis. Sem dúvida que muitos “endemoninhados” sofreram tais efeitos. O decisivo era, então, o controlo da Força» (cfr. Silo. Humanizar a Terra – O Olhar Interno. www.silo.net).
E, mais adiante, o mesmo autor escreve que a compreensão das manifestações da energia fez variar por completo tanto a sua conceção da vida corrente como da vida posterior à morte, advertindo o leitor, porém, para os estados alterados de consciência induzidos pela hipnose, a mediunidade e a ação de drogas, por terem como signo o não controlo e o desconhecimento do que se passa. Em alternativa, na mesma obra, Silo propõe um procedimento simples denominado “experiência da força” para poder mobilizar a energia psicofísica e registar a ampliação da consciência.
Deste modo, este não é um tema desprezível, já que encerra alguma verdade interna, mas não deve ser tomado de forma ingénua ou crédula, demandando outras investigações.

Edição
3011

Assinaturas MDB