A opinião de ...

“Uma cabeça sem memória é uma praça sem guarnição”.

“Onde fica a Praça 1.º de Maio, em Bragança?” “Ah… a Cavaleiro de Ferreira?” “Sim!” “Situa-se entre a Avenida João da Cruz e a Avenida Sá Carneiro, frente ao Teatro Municipal, é a Praça que tem no centro uma taça e um peixe, de um lado está o edifício do Tribunal Judicial de Bragança e, de outro o do Tribunal de Trabalho”.
Obra do arquiteto Fonseca Modesto, inaugurada em 1957, estilo Estado Novo pela uniformidade e rigor das formas. Emprestou-lhe o nome Manuel Gonçalves Cavaleiro de Ferreira [1911-1992], natural de Parada de Infanções, Bragança, Magistrado, Jurista, Ministro da Justiça de Salazar [1944/1954], Professor Catedrático de Direito.
Ainda hoje a Tia Maria Cândida me recordava o homem simples e, amigo dos seus conterrâneos. “Com que alegria ele se dirigia à minha mãe: “oh prima Cremilde!” “Quando vinha de férias para a sua aldeia natal, parava primeiro em Paredes. Por vezes andávamos a escolher batatas, ou a descaroçar milho, ele chegava, e para não interromper, puxava duma “tropeça” e, sentava-se à conversa, ao nosso lado”.
Enquanto Ministro da Justiça, Cavaleiro de Ferreira, procedeu à grande reforma do Código do Processo Penal Português de 1929, através do Decreto-lei 35.007/1945, de 13 de outubro de 1945, impondo o princípio do acusatório que ainda hoje perdura como princípio informador do direito processual penal português. Enquanto académico notabilizou-se pelo seu Curso de Processo Penal [1953-1958], obra ainda hoje seminal da moderna ciência do direito processual penal português. Em 1954 pediu a sua “honrosa demissão” de Ministro da Justiça, diz o Prof. António Menezes Cordeiro, pois recusava-se a assinar leis de exceção, que atribuiriam à polícia política o poder de contrariar os princípios do Estado de Direito material que sempre defendera. Depois foi o ver surgir as detenções policiais até 180 dias e, a perda da garantia da instrução judiciária.
O Prof. Cavaleiro de Ferreira tratou da organização do trabalho dos reclusos fora dos estabelecimentos prisionais e, da humanização das penas. Os edifícios dos Tribunais de Bragança, que dão corpo à Praça que assumiu o seu nome, foram obra sua e, dos trabalhadores que estavam a cumprir pena na Colónia Correcional de Izeda [hoje E. P. de Izeda]. Os ativistas do PREC, no verão quente de 1975, rapidamente a desnomearam para “1.º de maio”.
Recordo com saudade o Tio Manuel, da Tia “Delaide”, que dizia com naturalidade contida, mas com um brilho nos olhos, enquanto puxava, pelo canto da boca, o seu cigarrinho “Kentuky”: “em 56, quando estava na cadeia, ajudei Rui Preto Pacheco, que pintou o afresco do General Sepúlveda, que está na sala de audiências do Tribunal de Bragança”. Lembro-me, como se fosse hoje, da minha imediata reação interior de estupefação de aluno do 6.º ano de escolaridade: “o Tio Manuel sabe o que é um afresco!”
Ah e, da mudança do nome da Praça, no 1.º de Maio de 1975… recordo-me ainda da manhã do dia seguinte e, do polícia 26 aparecer no bairro muito cedo, de fato de macaco azul e, de “aguilhada” ao ombro. “Vens de Parada? Não devias estar a sair de turno?” Pergunta a esposa. “Não, fui desfazer uma afronta!” Responde perentório o guarda. “Uma afronta?” “Sim! Não é que ontem na Praça cobriram a lápide do Sr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, com outra a dizer 1.º de maio. Depressa lha “botei” abaixo, um homem que fez tanto pela terra não merece tal ingratidão!”. Vá-se lá saber porquê muitos, passado 46 anos, talvez nunca tenham reparado, que na Praça, como na memória das gentes, não tirando mérito aos trabalhadores e às suas lutas, quem tem prevalecido é o Prof. Cavaleiro de Ferreira.
Até Napoleão Bonaparte veio em auxílio do guarda 26: “uma cabeça sem memória é uma praça sem guarnição .

NB. Rui Preto Pacheco proeminente retratista [1922-1989], de Américo Thomaz, do Cardeal Cerejeira, de José Sarney e, do Prof. Cavaleiro de Ferreira, entre muitos outros. Em 1956, pintou na sala de audiências do Tribunal Judicial de Bragança, um belíssimo afresco denominado "a Revolta do General Gomes de Sepúlveda contra os Franceses - 11 Junho 1808".

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3818

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