O terror da criação
É conhecido o drama da página em branco. O escritor arranca para o texto muito a medo, mergulhado na dúvida sobre o que dizer, como dizer, para quê dizê-lo. Desejavelmente, a ideia germina muito antes, num momento de distração produtiva, num acaso de felicidade, numa caminhada ansiosa. A ideia ergue-se das sombras do subconsciente, rebenta as fronteiras do sonho para chegar, difusa e fragmentada, às mãos de quem aconteça agarrá-la. Do mistério à arte vai o sinuoso, laborioso exercício da materialização.
David Lynch, mestre da sétima arte, explicava que “a ideia surge num instante, pede-nos para se materializar, procura um meio para existir. A ideia é muito mais do que percebemos num primeiro momento, e portanto o processo criativo leva a revisitar permanentemente a ideia original, de forma a confrontar o trabalho em curso com a ideia que a ideia tem de si mesma. Somos obreiros dessa obrigação de fazer nascer”.
No caso do cineasta, o tumulto da criação levou à sua primeira obra-prima, “Eraserhead”, um clássico do cinema de autor, peça de culto sobre o drama da parentalidade. A narrativa decorre num contexto industrial, com a sonoplastia dura e estridente dos carburadores perpétuos, as grandes roldanas, os fumos negros. Uma sensação de matéria plástica, radioactiva, que os enquadramentos apertados e o contraste preto no branco intensificam.
A primeira criação artística reflete a primeira criação de vida: um filho disforme, quase alienígena, nascido muito prematuro, que berra a noite inteira, condenando os pais a um desespero absoluto. A figura grotesca tem um aspeto aquoso, líquido, viscoso; recusa alimentar-se; leva o pai ao cúmulo da raiva, cortando-lhe com uma tesoura as camadas de ligaduras que o envolvem e expondo-lhe os órgãos internos, até rasgar o coração do pequeno ser terrível para finalmente atingir alguma paz.
Neste espaço de reclusão e confinamento que é o quarto de Henry - assim se chama a personagem principal -, apenas as ilusões e especulações podem servir como escapatória: quer seja a bonita vizinha da frente, com quem fantasia; quer seja a “Mulher no Radiador”, criatura imaginária, com bochechas gordas em forma de ovários e uma dança repetitiva que inebria e faz sonhar o jovem.
“Eraserhead” é realmente a definição justa de um “fever dream”: os apontamentos cómicos fazem a cama para um drama que nos atinge mais intimamente, e a chave da história encontra o conforto no mundo dos sonhos, a mais democrática forma de fugir às agruras da vida real.
Se a esta descrição acrescentarmos o contexto: uma pequena bolsa de apoio à criação artística, um filme gravado durante a noite, e um período de cinco longos anos de desenvolvimento do conceito, conseguimos começar a intuir o sentido profundo da dedicação de Lynch a esta obra. Não nos dá apenas a sua cabeça genial, o seu detalhe minucioso, a sua competência técnica: oferece-nos Vida - a sua, a da sua família, a das ideias.
O terror da criação está presente na página em branco, mas manifesta-se também no produto que se apresenta com cada vez mais clareza a cada instante, trazido e recuperado infinitas vezes, até se materializar num objeto colocado à prova do mundo real, da comunidade e do tempo.