A opinião de ...

Que tempos são estes?

1. Escrevo esta crónica em período quaresmal. Confinado. Fisicamente. Utilizando a tecnologia, agora mais vulgarizada, um amigo, aqui da minha terra, lamentava-se: agora, não podemos participar nas tradicionais cerimónias desta quadra, tão importante para os católicos. Ao que eu rebati, afirmando que agora as cerimónias perderam a importância que lhes atribuímos quando, crianças e jovens, ouvíamos o repicar dos sinos, seguíamos todos os cortejos, sobretudo aguardávamos a entrada de Cristo nas nossas casas, ouvindo o Aleluia. Tudo está no sótão das memórias! Para os meus botões, fiquei pensando que seria bom que nós, cidadãos, “ressuscitássemos”, transformando a nossa mentalidade tantas vezes egoísta, tantas vezes voltada para o consumo desenfreado, tantas vezes não olhando com olhos de ver para o que se passa à nossa volta. A recuperação sanitária, económica e social só é possível se olharmos o Outro, se estivermos atentos ao sofrimento de multidões por este nosso Planeta. Católicos e não católicos, crentes e não crentes, devemos ter a obrigação, a ousadia e a capacidade de olhar o exemplo de Jesus. Como escreveu Frei Bento Domingues, na sua prosa hodierna e certeira: «Jesus está vivo no espírito e na vida de discípulos de hoje com problemáticas, questões, modos de ver o mundo, numa distância cultural de séculos. Significa que é preciso inventar música, literatura, pintura, teatro, cinema que possam tocar e cantar, como J. S. Bach: Jesus continua a ser a minha alegria… é quem me dá força para viver… mantenho Jesus no meu coração e como meu horizonte.» (Público, 4.4.2021).
2. Nestes tempos de haver tempo, qual a razão de não nos restituirmos aos hábitos saudáveis de leitura? Se é pedir muito pegar na obra mais traduzida e lida de todos os séculos, ao menos em algumas das suas belas páginas, a Bíblia; se é pedir muito pegar na excelente tradução da Odisseia, feita por Frederico Lourenço, o que, aliás, seria obra de muita monta; se é pedir muito que releiamos Os Lusíadas, obra marcante da nossa Literatura; se é pedir muito que nos deleitemos na obra poética de Sofia ou de Pessoa, ao menos, Miguel Torga, Trindade Coelho, Guerra Junqueiro, Camilo, Campos Monteiro, nossos clássicos, não esquecendo os autores atuais deste nosso Nordeste... Neste tempo, peguemos num livro.
3. Nestes tempos diferentes, não temos visto as multidões de turistas que nos invadem em todas as estações do ano. É este tempo, também, um sinal obrigatório de reflexão. Eu dou a minha opinião. Sobre a ponte de D. Luís no Porto, calcorreando, as belas calçadas de Lisboa, passeando pelo centro de Braga e Guimarães, aos magotes, as multidões tiram selfies, sob sorrisos momentâneos, fugazes. Ou, os que, por sua iniciativa, se atrevem a ir a Rio de Onor, ou a Gimonde, ou à Serra do Montezinho, ou alcandorar-se no castelo de Algoso, ou espraiar o olhar pelos lagos do Baixo Sabor, ou mirar as escarpas de Miranda e do Penedo Durão sobre o Douro, serão sempre bem-vindos. No entanto, como seria oportuno aproveitar o desconfinamento para alterar os nossos procedimentos perante a Natureza e perante os outros! É que, salvo belas excepções, os turistas saem de um hotel e entram noutro. E como lembrava Herberto Hélder, crítico, porventura um pouco exageradamente: «O turista é destituído de órgãos de visão e de audição; não vê nada, não ouve nada». (Herberto Hélder em minúsculas, Porto Editora, 1.ª edição, 2018).
Que tempos desejamos?

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3829

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