A opinião de ...

Bragança e as Coisas com Categoria: as duas ruas essenciais…

Uma, a decumana, calcada pelas sandálias romanas, e outra, filipina, de cavalaria militar. Uma ao lado da outra, a noite nelas foi tão palpitante como o dia. São duas ruas extraordinárias de Portugal, e ao percorrerem-se (como o dedo pelas lombadas de títulos inenarráveis duma interminável biblioteca), é a vida, a grandeza e a servidão humanas, a recomposição da sociedade na História que podemos vislumbrar. Rua Direita e Rua de Trás.
Cada edifício já é motivo de demora a cada metro, observar as fachadas, da parte do sol ou da parte da sombra, cada moldura de porta e janela, cada cantaria, cada letreiro, já apagado, cunhais cinzelados com sobriedade e aprumo de pormenor, reminiscências de maneirismo jesuíta. Mas se pensarmos nas pessoas que estiveram a essas janelas, nas que entraram e saíram pelas portas, usaram martelos de bater e campainhas e sinetas, chaves nas fechaduras, algumas com santo-e-senha, a vislumbrar a medo antes de sair, se nos ocorrerem os nomes dos que instalaram negócios e mesteres, que desapareceram natural, ou dramática, ou criminosa, ou simplesmente sem rasto chegaram e partiram, toda a atmosfera destas duas ruas ganha significados misteriosos, de guião de filme.
Sairmos do Chave d’Ouro de café tomado e sem recuarmos muito no tempo, uma loja de acessórios de automóveis que era original neste recanto do país, a Velasco de balcão corrido, o Poças restaurante e charcutaria, a Farmácia com os seus sobrenomes (e nas farmácias partilham-se tantos ou mais segredos do que nos confessionários), a Mário Péricles com rimas de livros, o monárquico Laurindo que costurava tecidos e vendia antiguidades, o sítio do sapateiro Chico Judeu, e assim por diante. Mas temos de ir mais devagar no tempo passado, os becos, o Estado com o Liceu e repartições, as lojas que venderam sedas e eram escaparate das tinturarias, a escola e a sinagoga hebraicas, casas burguesas e nobres, os ferros forjados, oratórios nalgumas. Encostadas umas às outras com passagens secretas, alçapões, salas de janela e alcovas em que as comprometidas apaixonadas aceitavam ser as segundas e terceiras deste e daquele, casanovas a entrar e sair pelas varanda ou fundos de adegas. Podemos querer voltar para cima dando a volta por São Vicente ou pelo beco em frente ao consultório onde uma notável dentista nos fez padecer, a uns quantos agarrados à cadeira articulada, “só mais um bocadinho…”, dando logo de caras para o Museu, digo, para a Casa da Mitra/ Paço dos Bispos/ Museu Abade de Baçal, digo, para…
Nesta rua, a antiga Carreira ou do Espírito Santo, há o Ancien Régime, a Misericórdia, o Liberalismo, o Estado Novo, uma das antigas Câmaras e Bombeiros, a humildade e a imponência. A história da Casa do Arco e as histórias das senhoras e raparigas que viveram sob o seu tecto, os bilhetes de namoros atirados e os sinais e os cigarros fumados às escondidas nas sacadas, há os anos sessenta e setenta nas lojas dos discos e instrumentos. Há de tudo e há tanto! Até o palacete dum Par do Reino que, por razões secretas mas que ele fazia questão de demonstrar em público, tirava o chapéu e inclinava a cabeça para cumprimentar um engraxador de sapatos.
Nesta grande casa dos grandes Veiga Cabral e do Sá Vargas, escalavrada para ser o Banco de Portugal, é o Centro de Arte Contemporânea.
Mas há uma categoria especial cujo autor é de Bragança, génio de artista raro, e que em 1958 pincelou numa parede, impregnado de Trás-os-Montes, o sentimento torrencial da aldeia, os significados das denúncias e intenções nas poses e olhares de modelos intemporais, exuberância, lados escondidos, até o mistério, um cocktail das São Joões de Palácios que no toural vinham desaguar a Bragança: Manuel Ferreira, no Restaurante Poças, arrebata-nos para lá da parede. E passarmos para lá das paredes, como a Alice para lá do espelho, bem pode acontecer-nos pelas duas das ruas mais extraordinárias de Portugal. Com uma inédita categoria.

Edição
4020

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