A opinião de ...

O Erro de Descartes e o pastor – de novo, as emoções

Desce as arribas do Sabor, agarrado ao seu pau, liso, gasto de décadas, uma bela vara de olmo, as ovelhas pastando aqui e ali, metediças, a espreitar a erva do terreno vizinho – é sempre assim, até os animais têm estes gostos. Ele, o meu amigo pastor, lança a pedra com perícia e afasta os seus animais.
- Põem-se doudas quando miram a erva noutras partes; cá pra mim, elas têm quereres que às vezes fazem lembrar algumas pessoas que gostam de ter o que não lhes pertence – atirou-me, quando me aproximava, chegando à sua fala.
- Mas, ó Joaquim, os animais também têm vontades, também sabem o que lhes agrada, ou não?
- Claro, Pedro, as minhas ovelhas, estas e tantas outras centenas, milhares, que me passaram pelas mãos, acredito que tenham consciência, boa ou má, mas que não é igual à nossa, não é, não têm sentimentos, não choram, não sorriem, não falam, mas cá pra mim, elas ficam contentes quando estão fartas, e quando vão para o redil ou para o curral, ficam assustadas e sofrem quando pressentem lobo ou raposa ou javali e logo correm a juntar-se, até lhe digo que se aproximam de mim aliviadas com o meu apoio.
Não surpreendido pelo raciocínio e sagacidade, mas satisfeito pela sabedoria lógica e intrínseca do mesmo, relembro a obra de António Damásio, o neurocientista português que trabalha o problema da mente, integrando-a no corpo (ao contrário do pensador do século XVII - Descartes - que separava o corpo da alma), atrevi-me:
- Acha que são humanas como nós?
Calou-se por breves momentos, enquanto lançava outra pedra de aviso ao carneiro que se encarrapitava a uma oliveira nova, procurando as folhas tenras, referindo, de seguida:
- Não digo isso, pois não vê que têm quatro patas, cabeça pequena, poucos miolos; às vezes atravessam sítios alagados em pleno inverno, apanham peeira, já as vi tresmalhadas, tenho eu de procurá-las, como diz a parábola do bom pastor. Olhe, desça um pouco, que ali abaixo há mais pasto.  Temos de ir acompanhando o gado. Dizia eu que são animais, mas que têm os seus pensares, não tenho dúvidas, e olhe que conhecem bem quando eu estou contente ou quando ralho.
De novo, o neurocientista: a consciência básica é um fenómeno biológico simples, não exclusivamente humano, atingindo o seu auge, o seu supremo desenvolvimento quando é alcançado o conhecimento de si, só possível no homem, que tem emoções e sentimentos.
- Ó Joaquim, as suas ovelhas têm sentimentos, têm capacidade de descobrir quando vossemecê ralha ou as chama para regresso a casa? Há um cientista que afirma terem alguns animais uma certa consciência.
- Olhe, se esse senhor o diz é porque estudou, é doutor, com certeza, então sabe. O que eu sei é o que esta vida me ensina. Conheço as minhas ovelhas, trato-as bem, são a minha riqueza, elas entendem-me e eu entendo-as.
Interrogo-me: gostaria António Damásio de conversar com este ‘cientista’?

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