A opinião de ...

A propósito da “descolonização da língua portuguesa”

Confesso a minha admiração pela afirmação da escritora moçambicana, Paulina Chiziane, proferida na cerimónia de entrega do Prémio Camões: “Para quem vem do chão, estar aqui diante do Governo português, do Governo brasileiro, do corpo diplomático e de várias personalidades é algo que me comove profundamente. Caminhei sem saber para onde ia, mas cheguei a algum lugar, que é este prémio”. Caminheira de percursos, criadora de originalidades, guardadora de marcas, orgulhosa do tempo e do espaço – eis uma personalidade que deve encher de orgulho os falantes da nossa Língua. Falantes do hemisfério norte e do hemisfério sul. Tem razão: é preciso rever conceitos semânticos providos de uma certa ideologia de supremacia, ainda herdeira (queiramos ou não) do lusotropicalismo, e que ainda constam dos dicionários. Deu exemplos que mostram que o significado está associado ao contexto e ao conteúdo: catinga, palhota, matriarcado, patriarcado. Revejam, leitores, no dicionário, como a escritora tem razão, porque eles traduzem verdadeira discricionariedade.
Não temamos se a língua portuguesa absorve termos próprias das línguas nativas faladas nos Países que têm a Língua Portuguesa como referência oficial. Não é verdade que nos reservámos e mantemos o direito de sermos caminhantes pelos sete mares? Não é verdade que entrámos pelos sertões africanos e brasileiros (por vezes, à custa de sacrifícios dos povos) onde os falantes locais souberam dar um sabor especial à língua invasora? Não temamos, igualmente, porque somos – por força da globalização – embrulhados em variadíssimos termos ingleses.
A propósito das palavras proferidas por Paulina Chiziane, lembrei-me da obra de Amílcar Cabral em prol da Língua Portuguesa. Herança que não abandonou em toda a sua vida de lutador pela libertação dos Povos da Guiné e de Cabo Verde.
Recordo, com emoção. Como soldado que não queria ir à guerra, mas fui à guerra, pude observar uma escola, em plena mata libertada pelo PAIGC, debaixo de um poilão (árvore imponente): banquinhos de madeira, o quadro negro dependurado no tronco, paus de giz, um ponteiro, um livro – tudo abandonado à pressa quando a tropa portuguesa se aproximou. O livro de leitura e o que restava escrito no quadro eram em língua portuguesa.
Com emoção, visitámos, a minha mulher e eu, a exposição sobre a vida de Amílcar Cabral patente no Palácio Baldaya, Lisboa – elementos disponibilizados pela Fundação Mário Soares. Uma vida de desafios variados, sempre com o objetivo claro: a independência dos Povos da Guiné e Cabo Verde. Um dos aspetos que nos comoveu – sabíamos por grandes amigos guineenses que frequentaram essa escola e foram combatentes pelo PAIGC, e com quem partilhamos longa amizade – foi ver a promoção da língua lusa na Escola-Piloto do PAIGC, sediada na Guiné Conacri. Filmes e livros exibem o “compromisso” histórico assumido por Cabral e seus parceiros de luta. Trouxemos da exposição fotocópias de lições pedagogicamente ricas, em nada inferiores ao que se ensinava nas nossas escolas.
Paulina Chiziane lembrou que “cada povo africano recebeu uma língua, que tem de preservar, guardar”. Essa língua é “herança divina”, mas depois, por “circunstâncias da história”, receberam outras línguas – “uma herança humana”.

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