A opinião de ...

Quando todos ficarem para trás, que país teremos pela frente?

Há quase um ano, a 19 de abril de 2020, o Papa Francisco dizia, na missa que assinalou o 20.º aniversário da instituição do Domingo da Divina Misericórdia, que “enquanto pensamos numa recuperação lenta e trabalhosa da pandemia, é precisamente este perigo que se insinua: esquecer quem ficou para trás”.
O Papa referia-se, em primeira instância, ao perigo de descartar os mais frágeis da sociedade. Mas, quase um ano depois, quando a pandemia e o novo coronavírus já se enraizaram na nossa vida de forma arreigada, as palavras do Papa Francisco estão mais atuais do que nunca.
“Chega-se a selecionar as pessoas, a descartar os pobres, a imolar no altar do progresso quem fica para trás. Esta pandemia, porém, lembra-nos que não há diferenças nem fronteiras entre aqueles que sofrem. Somos todos frágeis, todos iguais, todos preciosos”, apontou, na altura, o Sumo Pontífice.
Num país de recursos limitados para as necessidades existentes, como Portugal, a justa, eficaz e assertiva distribuição desses parcos recursos é, ainda, mais premente.
Se a escola pública é um bem que deve ser acedida por todos, é cada vez mais incompreensível que, ao mesmo tempo que assistimos a uma autêntica corrida tecnológica para chegar a Marte, em Portugal ainda haja alunos que não conseguem assistir a aulas da escola pública por falta de recursos como computadores ou internet.
E se não fosse o trabalho das Câmaras Municipais e Juntas de Freguesia, o problema seria ainda pior.
Situações com a vivida pela jovem estudante de Serapicos, em Vimioso, é apenas mais um exemplo do esquecimento a que é votado parte do país, aquela que não se vê das janelas do Terreiro do Paço, em Lisboa, coberta por uma sombra negra e gelada que devia envergonhar todos.
Isto num concelho em que nem se cumpre a lei, pois o Ensino Mínimo Obrigatório, que foi alargado ao Secundário, não tem autorização para ser ali disponibilizado, obrigando pais e alunos a transferirem as suas vidas para os concelhos vizinhos.
Casos destes serão cada vez mais frequentes num país que vai encolhendo em direção a Lisboa, até não ter mais para onde encolher, enquanto muitos encolhem os ombros e olham para o lado, assobiando.
Já esta Quarta-feira de Cinzas, o Papa Francisco alertava que “todos temos doenças espirituais: sozinhos, não podemos curá-las; todos temos vícios arraigados: sozinhos, não podemos extirpá-los; todos temos medos que nos paralisam: sozinhos, não podemos vencê-los. Precisamos de imitar aquele leproso, que voltou para Jesus e se prostrou aos seus pés”.
Enquanto em Lisboa não se perceber que o país é bem maior do que aquilo que do Terreiro do Paço se vê, estamos apenas a tornarmo-nos mais pobres. E ao deixar os pobres para trás, um dia vai-se a olhar para a frente e nada se verá...

“Da minha aldeia veio quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos”

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3820

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