A opinião de ...

O meu “Novos Contos da Montanha”

“Apaga a luz e dorme, filho!” Julgava eu que a luz da pequena lanterna quadrada – a mesma que usava para ir à fonte, descer à adega ou encandear pardais nos medeiros de palha, não se via por debaixo dos cobertores. Talvez não se visse e minha mãe, por força da reincidência, a adivinhasse.
Seria capaz de jurar que foi com Miguel Torga que passei muitas das longas noites de inverno, naquela casa onde se acendeu o lume, o amor, a vida, e minha avó chorou os filhos por trás das cartas que chegavam do ultramar. Também nela, depois, minha mãe foi mãe com saudades e distâncias. Sim, seria capaz de jurar que ali conheci “O Alma-Grande”, mas não juro. São memórias imprecisas, embora limpas como a chuva e como o linho. O que juro e assino, é que no nono ano, ao rebentar dos primeiros pelos da barba e no tempo de todas as perguntas do corpo, fui apresentado ao pequeno Artilheiro. Ali, lado direito de quem entra, 4.ª carteira, da segunda fila, a contar da janela, Padre Silva – ou seria Padre Melo? – rezava o breviário, ora cruzando o salão de ponta a ponta de forma metódica, ora tomando direções imprevistas e perigosas
“[…] Rijo, só músculos e tendões, viril como um gato ágil, o Artilheiro parecia um raio a varar aquela virgindade. E a Guiomar, se não sentia nos braços um homem do tamanho do Marão, abria-se inteira à eficiência de uma força sem dispersão, rápida, concêntrica e desfibrada.
– Meu amor…”
Livro protegido por baixo de outro livro, pelo canto do olho espreitava o “perfeito”. (Desnecessário na circunstância, pois aqueles textos faziam parte do programa de ensino, sendo apenas modo adquirido de esconder o vício das leituras). E a narrativa continuava:
“Começava uma verdadeira e pura fonte a nascer dentro dela e a inundá-la da única paz que é na vida o remédio de todas as fantasias.
– Meu amor…”
Foi no imenso e saudoso Seminário de S. José, em Bragança. Saberia eu o significado daquelas fontes? O miolo do austero exemplar dos “Novos Contos da Montanha” não tinha um pedaço em branco. Nele, a lápis, escrevia significados de palavras, ressonâncias de leituras e, na horizontal como na vertical, histórias acesas nas que lia. Não me atrevo a rotulá-las de pretensiosas; de longe, à distância de quase quarenta anos, prefiro vê-las como suprema e terna homenagem. A quem o terei emprestado? Em matéria de livros, foi um dos meus desgostos.

*(Universidade Católica Portuguesa, Escola das Artes)

Edição
3841

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