ANAMNESE
Já lá vai um bom par de anos. Lembro-me, porém, muito bem da sua chegada à aldeia, num novíssimo Peugeot 504, de último modelo em azul elétrico, com a sua lustrosa matrícula francesa, bem evidente pelo brilho metálico das letras e números. Estava ufano pela sua conquista. Esteve anos e anos sem regressar à aldeia, depois da incursão bem-sucedida por terras gaulesas. Retiveram-no, em Saint Denis, nos arredores da capital francesa, duas razões que estavam relacionadas entre si: O receio de não conseguir regressar e pagar integralmente as dívidas que contraíra para pagar ao passador que, por duas vezes, o colocara para lá de Irun, nas proximidades de Bordéus. “Duas vezes!” repetiu-me ele, não porque fosse desconhecida a sua odisseia de ida, a salto, alguns anos antes. Na primeira tentativa, quando já arranjara trabalho nas obras, foi “apanhado”, por descuido seu, má sorte ou, não excluía tal hipótese, por denúncia de alguém que não foi com a cara dele, e, como estava indocumentado, foi colocado na fronteira portuguesa com a recomendação de não voltar a tentar. Mas ele não era de desistir. Nem tanto p0r teimosia ou qualquer perseverança de um caráter determinado e inconformado, mas porque nada tinha a perder na ausência de futuro, na aldeia, onde nada tinha, para além de dívidas por saldar. Não lhe restava alternativa se não tentar de novo, desse por onde desse! A custo conseguiu encontrar quem lhe confiasse os doze contos de reis que precisava entregar, em notas, ao mesmo passador que o levara antes e a quem pedira e conseguira que o entregasse em zona remota onde pudesse trabalhar, com alguma segurança, sem papéis, até conseguir legalizar-se. Conseguiu, não sei como, obter o ambicionado “carnet” que lhe permitiu regularizar a sua situação e assim poder aproximar-se, com alguma segurança, da capital onde havia trabalho com maior abundância e diversidade. “Trabalho não falta! Porque há muitas tarefas que os franceses não querem fazer. Algumas delas, a bem dizer, também eu não as fazia aqui! Lavar o chão, escadas e janelas… Até limpar retretes… Mas lá, faço tudo. Fazia, vá. Agora a vida já me corre melhor pois estabeleci-me por conta própria e assim ganho mais, fazendo o que mais gosto!”
Nunca apurei as condições que lhe permitiram legalizar-se, após uma deportação forçada. Constou-me que uma discrepância entre a cédula de nascimento e registo de nascimento lhe permitiu obter o necessário passaporte para poder viajar, sem problemas, no espaço europeu. Ainda bem pois só ele ficou beneficiado, não havendo notícia de qualquer prejuízo, para quem quer que fosse, muito pelo contrário, a fazer fé nos testemunhos dos conterrâneos, seus vizinhos, que atestam serem os seus serviços muito requisitados e apreciados pelos locais.
Lembrei-me deste incidente de há mais de cinquenta anos ao ter tido conhecimento da deportação que foi decretada para os imigrantes magrebinos que deram à costa portuguesa, há alguns dias, depois de uma perigosa e sofrida aventura marítima.
Espero bem que quer o meu velho conhecido, quer os seus descentes não sejam eleitores de qualquer um dos partidos que tão desumanamente trata quem, com sacrifícios vários abandona o seu país à procura de uma vida melhor.
Quando perdemos a memória, deixamos de ser quem somos.