A opinião de ...

A UNIDADE EUROPEIA E OS MICRONACIONALISMOS

 
Durante o meio século de guerra fria, as duas metades da Europa, a democrática e a soviética, viveram um pluralismo diferente, para além das diferenças ideológicas e das memórias históricas. A Rússia, depois do que a Prémio Nobel Svetlana Aleksievitch chamou, num livro célebre, “O fim do homem soviético”, estabilizou, ao que por agora aparenta, na memória de um só povo, em que se apoia a política de Vladimir Putin, com expressão no problema da Ucrânia de dupla memória, a polaca e a russa, apoiada na clara afirmação de que a sua fronteira de interesses é superior à sua fronteira geográfica. Na parte ocidental, a geral aceitação do modelo democrático, apoiado no pluralismo do modelo Estado-Nação herdado da paz de 1918 e do estatuto da Sociedade das Nações, e depois da frustrada tentativa de uma Constituição unitária rejeitada em 2005, optou por uma União que se apoiou na manutenção da identidade dos Estados membros, mas criando progressivamente uma regulamentação de aspetos fundamentais, sobretudo nas áreas da antiga soberania económica, o que implica a lembrança frequente de cada um sobre a sua histórica identidade estadual, invocação cuja frequência cresceu impulsionada pela crise de 2007, replicando à então intervenção do Conselho Europeu na gestão das crises. As dificuldades de relacionamento das populações com cada um dos Estados membros da União em vista das consequências sociais inquietantes na vida habitual dos cidadãos, entre mais efeitos provocaram a multiplicação dos populismos, tratados com displicência igual à sua inquietação e distância em relação aos poderes em exercício, sendo de destacar o aprofundar da tendência para o que foi chamado a possível “reconfiguração inevitável dos territórios”, uma maneira suavizante de referir a multiplicação dos micronacionalismos. De facto trata-se da eventual quebra da unidade de alguns dos Estados membros, alguns nunca tendo rigorosamente correspondido ao conceito de unidade Nação-Estado de 1914, que fez desaparecer os Impérios Europeus (Alemanha, Austro-Hungria, Rússia, Turquia), mas não extinguiu as múltiplas diferenças históricas, culturais, e até religiosas que ficaram dentro de Estados plurais, de formação interna política, mas não nacional. Trata-se de uma questão diferente da saída da União, como está pela primeira vez a acontecer com o Brexit, rodeado de dificuldades e incertezas do Reino Unido, mas sim de pôr em causa o princípio fundador da negociação ser entre os Estados existentes, atingido com a falada reconfiguração de alguns deles que pode não implicar, se efetuada, a saída das novas unidades estaduais, mas impondo a previsível e seguramente trabalhosa nova negociação, de êxito imprevisível. É por isso compreensível que a União não se mostra favorável aos micronacionalismos, e que para ela, embora diferente, o facto seja perturbador como o é para o Estado ameaçado de separatismos. Naturalmente o caso presente da Catalunha é exigente de estudo quanto ao futuro, e de exemplo quanto às dificuldades. Trata-se de um problema secular, que não afeta apenas a Espanha mas também o que a Espanha unitária representa para a Europa e para o mundo de fala espanhola, o que teve sem dúvida importância para que o método legalmente repressivo tenha posto de lado a recomendável política de negociação. O contágio, não apenas dentro da própria Espanha, não é de considerar impossível, bastando lembrar a sua história próxima: mas o próprio Reino Unido, a Bélgica irremediavelmente plural, a Itália de muitas histórias, não podem deixar de cultivar uma política interna que evite o aparecimento e crescimento de micronacionalismos, para que a anarquia não se mostre como uma consequência possível para a ordem territorial conseguida depois da guerra de 1939-1945. Não é possível fazer evoluir a União Europeia sem aperfeiçoar, como vai acontecendo, o funcionamento democrático de cada Estado membro, porque é difícil considerar que o europeísmo unido possa resistir a uma reforma territorial que faria com probabilidade renascerem, com forma talvez nova, conflitos de um passado difícil. O novo modelo europeu, com tanta dificuldade alcançado, seria dolorosamente atingido por uma corrente de micronacionalismos. Mas não será a falta de diálogo político, substituído pela severa repressão, que impedirá o visível risco para a nova Europa que ainda está em trabalhos de construção pacífica. Comparando a orientação da Europa da NATO com a Europa de Varsóvia, talvez não possa concluir-se senão, como já foi dito e sublinhado, que micronacionalismo num lado e recordação do imperialismo do outro, seriam aliados naturais para a exigência de uma nova geopolítica, não necessariamente pacífica. 

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