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O texto na música sacra

A invenção da escrita é um marco historiográfico de grande importância. Aceitamos, comumente, que a adoção da escrita marca a viragem entre a pré-história e a história de uma civilização. Arrisca-se assim que: o aprimoramento da arte de escrever, com apogeu na poesia, é um dos traços mais profundos da evolução do intelecto humano.
O texto, na música sacra - e litúrgica - assume uma importância estrutural que obriga ao compositor um conhecimento profundo de literatura e um domínio exemplar das estruturas poéticas. Aliás, a própria distinção entre música sacra e música litúrgica tem na literatura a sua natural fronteira.
Se musicalmente é impossível dissociar o texto, inversamente a tarefa não fica nivelada. O poeta - no fundo, um compositor de palavras - imagina o texto nas suas imensas possibilidades fônicas. Tomemos como exemplo um Hino, cuja estrutura métrica é disciplinarmente organizada, e cujo som da palavra falada transporta já grande musicalidade.
Se o compositor esquecer esta componente o resultado prático ficará muito aquém da beleza que inicialmente o poeta cunhou no texto. A esta preocupação junta-se a organização métrica da melodia que se associa ao texto, fazendo que aos tempos fortes se associem sílabas importantes ou tónicas. À orientação melódica da frase acresce ainda a organização harmónica que esta deve assumir no contexto. E ficariam por enumerar alguns aspectos importantes na relação música-texto, como a textura, o andamento ou a dinâmica. Contudo, esta pequena amostra ajuda-nos a ter a percepção real da importância de uma boa escolha de texto, do cuidado que o poeta deve ter e, evidentemente, o compositor ao se apropriar da componente literária.
Na história recente da música sacra, por necessidade ritual, observamos imensas adaptações de música existente a novos textos ou, noutros casos, a traduções livres dos textos originais. Em muitos destes casos o desconforto da música adaptada é evidente ao ouvinte. Na CIMS queremos debater questões como esta, promovendo a consciente utilização de textos e o ciente uso da arte de compor para elevação da qualidade futura das obras de música sacra.

Rui Valdemar

Edição
3896

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