A opinião de ...

Culturas telúricas

Conversar com a população transmontana é, além de tudo o mais, sentir o substrato de ruralidade que nutre as suas vivências, passadas e atuais. Mesmo aqueles que vivem nas cidades, mantendo atualmente um estilo de vida predominantemente urbano, mostram os sinais de uma cultura profundamente telúrica, que o escritor Miguel Torga tão bem soube ilustrar nos seus contos.
É certo que, por efeito da revolução industrial e da transformação social potenciada pela mesma, com o crescimento exponencial das cidades, o meio rural acabou por ficar associado a uma certa ideia de atraso económico e cultural, refém da pobreza e do analfabetismo da maioria das suas gentes, assim como de um conservadorismo arcaico.
Contudo, essa realidade tinha mais a ver com a distribuição desigual da terra, a sazonalidade do trabalho, as baixas remunerações e a falta de acesso universal à educação, do que com as características inerentes à ruralidade.
Hoje, após 45 anos de vigência da Constituição da República Portuguesa de 1976, que veio, nomeadamente, universalizar o acesso à educação, à saúde e à segurança social, além de instituir o poder local democrático - a que acresce, por outro lado, a modernização das vias de comunicação, aproximando as diversas regiões e localidades, e a generalização do acesso à televisão e à Internet, nivelando o acesso à informação -, assistiu-se a uma aproximação do nível cultural e do desenvolvimento económico do meio rural em relação aos meios urbanos.
Não significa isto que não subsistam importantes discrepâncias entre um e outros, desde logo no que respeita à vitalidade demográfica, mas o meio rural foi-se progressivamente tornando mais atraente, designadamente para muitos citadinos à procura de outro modelo de vida, de forma intermitente ou mais permanente.
No entanto, esta convivência renovada entre as populações urbanas e rurais implica também um choque de paisagens mentais, de mundividências, que coloca algumas dificuldades no que respeita à compreensão mútua, com prejuízo para a minoria rural, muitas vezes arredada dos processos de decisão política.
Embora sem esgotar o assunto, esta linha de tensão é particularmente visível no modelo de relação com os animais, já que a conceção utilitária típica do meio rural foi suplantada pela abordagem afetiva das populações urbanas, com reflexos ao nível das práticas socialmente, ou mesmo legalmente, admitidas, de que as touradas ou a caça são apenas os exemplos mais evidentes.
Em todo o caso, um erro comum neste tipo de confrontações é julgar o todo pela parte, afirmando a superioridade da própria cultura ou condenando globalmente a cultura alheia, por efeito de uma prática considerada reprovável, sem atender à riqueza da diversidade e da troca de experiências.
Na verdade, se, numa dada cultura, se ignora os direitos fundamentais, colocando acima do ser humano outros valores, é porque ali houve um desvio, algo entrou em divergência com o destino comum da humanidade, pelo que a expressão dessa cultura, nesse ponto em particular, deve ser claramente repudiada, sem que isso implique a deposição de toda essa cultura.
Por outro lado, as tradições, embora respeitáveis, não são imutáveis, devendo preservar-se somente na medida em que continuem a contar com a adesão da população local, cuja sensibilidade também pode ir mudando, desde logo de geração para geração.
A ruralidade emerge, sobretudo, de um modo de vida ligado à terra e, portanto, às atividades agro-pecuárias, em maior ou menor escala, mas hoje nada impõe que as mesmas signifiquem atraso cultural ou penúria económica para quem as desenvolve. E, nessa medida, não existe nenhuma superioridade intrínseca do modo de vida urbano sobre o estilo de vida rural, sendo certo que ambos têm a aprender um do outro, para benefício de todos.

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