A opinião de ...

Escravos do Séc. XXI

O filme “12 Anos Escravo” adapta ao cinema o livro em que o músico negro Solomon Northup narra o seu sequestro em 1841 e a sua venda como escravo. Ao fim de uma dúzia de anos, conseguiu, judicialmente, recuperar a liberdade. Foi considerado o melhor filme de 2013 pela British Academy of Film and Television Arts (BAFTA). Depois de ter merecido o mesmo galardão da crítica e de ter vencido o Festival de Toronto, no Canadá, perfila-se como um forte candidato ao Óscar de Melhor Filme, estando nomeado para outras oito categorias.
No decorrer da ação são citadas passagens bíblicas que legitimariam a escravatura. De facto, a Bíblia não condena explicitamente essa prática. Mas, sobretudo, o Novo Testamento propõe os princípios que contribuirão para a sua abolição.
S. Paulo embora não se oponha claramente ao esclavagismo, mas também não se pode dizer que os seus escritos o legitimem. Na carta aos Gálatas escreve: “não há escravo nem livre; pois todos são um em Cristo Jesus” (3, 28). Para além disso, não hesita em acolher Onésimo, o escravo foragido de Filémon, apesar das leis de então punirem tanto o fugitivo como aquele que o acolhia. Devolve-o acompanhado por uma das suas cartas, a mais pequena de todas, que alguns apelidam de “postal”. Pede a Filémon que o receba, já não como escravo mas “como irmão querido” (v.16). Entretanto, ele tinha-o batizado, pelo que, ele era agora seu irmão. Pelo que, recomenda a Filémon, que o acolha como se fosse o próprio Paulo.
Tal como Paulo, a Igreja nunca discriminou os escravos e sempre os admitiu, como qualquer outra pessoa “livre”, aos sacramentos. Apesar de em muitos contextos ter compactuado com a escravatura, o seu Magistério condena-a desde o século XV. O Papa Eugénio IV publicou a Bula “Sicut Dudum”, a 13 de Janeiro de 1435, que é considerado o primeiro documento a tratar explicitamente do assunto, pedindo a libertação dos escravos das Ilhas Canárias. Muitos anos, antes do decreto de Marquês de Pombal, em 12 de Fevereiro de 1761, que fez do nosso país o primeiro a abolir a escravatura, legalmente. Sabe-se que essa prática foi consentida, em território nacional, até ao dealbar do século XX.
Desde então, na generalidade dos países, tem vindo a ser abolida. Contudo, ainda hoje continuamos a ter formas de tráfico e exploração de seres humanos.
Na cerimónia de entrega dos prémios BAFTA, o realizador da película galardoada como o melhor filme, Steve​ McQueen, recordou que “há 21 milhões de pessoas escravizadas enquanto estamos aqui sentados. Espero que, daqui a 150 anos, a nossa apatia não permita outro cineasta fazer este filme”.
O comércio e exploração do género humano são, por vezes tolerados e até promovidos, pelos Estados, como revelou, recentemente o relatório da ONU sobre a Coreia do Norte. Outras vezes, desenvolve-se de forma ilegal e beneficiando da "globalização da indiferença" de que falou o Papa em Lampedusa. Que já na sua primeira mensagem "Urbi et Orbi" da Páscoa tinha referido que "O tráfico de pessoas é realmente a escravatura mais disseminada neste século vinte e um".
Durante o primeiro fim de semana de Novembro, passado, reuniram-se em Roma sessenta observadores, religiosos e leigos, que refletiram a temática do tráfico humano e formularam uma proposta contra todas as formas de escravidão. Desse encontro saiu, também, a decisão de promover em 2015 um congresso de quatro dias para aprofundar o debate desse assunto.
Espera-se que a Igreja não se fique pela reflexão e produção de textos condenatórios dessas práticas, mas tal como S. Paulo, nos contextos concretos em que desenvolve a sua ação, encontre formas de dar testemunho da sua posição oficial.

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