A opinião de ...

Domesticar o povo

Das muitas definições do direito, há uma que pela sua simplicidade qualquer cidadão entende: “conjunto de normas de conduta em sociedade coercivamente impostas”. É esta coercibilidade que distingue a norma jurídica das outras normas de convivência social, nomeadamente as normas morais, religiosas, de cortezia, etc. que se não forem cumpridas pelo cidadão, não são objecto de qualquer sanção (pena ou castigo).
Há dias, um ancião explicou-me como era preenchida a “vara da justiça” na aldeia de Rio de Honor do concelho de Bragança e como eram castigados os “fregueses” que se esquivavam ao cumprimento das deliberações do conselho da freguesia. Terminou a sua explicação afirmando que a vara da justiça era uma “forma de domesticar o povo”. Esta expressão “domesticar o povo”, para aquele ancião, e na sua convicção, nada mais era do que a aplicação de um castigo (uma multa, uma sanção) para obrigar os habitantes a cumprir “as leis” da freguesia, ou seja, os costumes de Rio de Honor. Claro que não vou falar dos costumes daquela povoação, mas tentar explicar o que é o costume como uma das fontes de direito.
Qualquer aprendiz de direito começa por estudar as fontes de direito: a lei, o costume, a jurisprudência, a doutrina e a equidade. Podemos afirmar que o costume ainda é uma fonte de direito? A resposta terá de ser negativa, porquanto o costume só é fonte de direito se a lei o determinar. De facto, o costume constitui até ao sec. XVIII, a mais importante fonte de direito em Portugal. A “Lei da Boa Razão” publicada em 18 de Agosto 1769, segundo os conceitos iluministas da época, obedecia a três principios: - “1 – principio da validação das leis segundo o qual só seriam aceites os diplomas que não colidissem com os princípios da boa razão humana; 2 – preponderância do direito nacional sobre o direito romano e o direito canónico; 3 – o costume não podia contrariar estes dois princípios”. A partir desta lei, o costume principia o seu declínio e quase desaparece no nosso direito deixando de ser aplicado pelos Tribunais.
Não basta existir um costume (usos da terra) como uma prática para, só por esse facto, ter força de lei; é necessário que essa prática uniforme e constante seja observada na sociedade durante muitos anos com a convicção e a consciência generalizada da sua obrigatoriedade. Depois da publicação daquela lei, só o costume com mais de cem anos de existência poderia ser aplicado pelos nossos tribunais, o que na prática era quase impossível pelas dificuldades da prova da sua existência. A lei escrita dá mais segurança, certeza e confiança ao cidadão, razão por que o povo, contra a vontade dos grandes senhores, sempre reivindicou a existênca de leis escritas. A lei “escrita na pedra” dava mais segurança ao povo “quando existem leis que nem o rei a podia alterar” como constava no Código de Hamurabi, há cerca de quatro mil anos.
O código civil português, art. 3º, releva o valor jurídico dos usos: - “os usos que não forem contrários aos principios da boa fé são jurídicamente atendíveis quando a lei o determine”. Por aqui se conclui que o costume só é fonte de direito, se duas condições se observarem: 1/ - não forem contrários aos princípios da boa fé, e 2/ - quamdo a lei o determine. O código civil português é muito avaro no reconhecimento dos usos locais, apenas lhe dando alguma relevância, a título de exemplo, nos contratos de pareceria pecuária (1.121º e segs do CC), na determinação do prazo da prestação (777º CC), tempo e lugar do pagamento do preço (art. 885º CC) e pouco mais. No entanto, como no nosso direito vigora o princípio da liberdade contratual – (art. 405º CC) - nos contratos podem sempre ser incluídas as cláusulas que os contratantes entenderem; desta forma, podem os contraentes dar alguma vida aos usos da terra porquanto, sendo estes incluídos como cláusulas contratuais, os contraentes se obrigam depois a cumpri-los desde que não sejam contrários aos princípios da boa fé, à lei e aos bons costumes (art. 280º CC). De forma indirecta, na prática, os usos locais continuam assim a ter uma grande relevância na celebração e cumprimento dos contratos.
Amigo leitor, muito mais haveria a dizer sobre os “costumes do reino”; nunca confunda o costume como fonte de direito (que além da consciência geral da sua obrigatoriedade impunha uma sanção ao não cumpridor) com as nossas tradições. Se, por qualquer razão, ofiel amigo” não estiver na sua mesa na noite de consoada, por não observar esse antigo “costume português”, não sofrerá qualquer sanção (penal) ... Boas Festas e um Feliz Ano Novo

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