A opinião de ...

Servir-se de uma pauliana…

A acção pauliana também chamada impugnação pauliana na tradição jurídica portuguesa, ou apenas pauliana na terminologia forense, é uma acção judicial pela qual o credor pode anular os actos do seu devedor que envolvam diminuição da garantia patrimonial do seu crédito. Dito de uma forma mais simples, o credor pode propor uma acção em Tribunal com o fim de invalidar as vendas ou doações que o devedor fez com intenção de não pagar as suas dívidas. Por vezes, as pessoas menos sérias e dotadas de alguma esperteza saloia, desfazem-se do seu património com a intenção de fugir às suas obrigações e deixam os credores de mãos a abanar.
Esta prática de pessoas caloteiras existe desde tempos imemoriais. Já no antigo Egipto se fazia a diferença entre o escravo originário e o escravo por dívidas. No antigo direito romano, para evitar o exercício de tal prática perniciosa para o património dos credores, o cidadão que não pagasse as suas dívidas respondia perante o credor com a sua própria pessoa, ou seja com o corpo. O devedor incumpridor era reduzido à escravatura e depois vendido a um estrangeiro, podendo o credor fazer dele o que quisesse. Muitos devedores eram esquartejados e o seu corpo dividido e entregue aos credores, o que lhes era permitido fazer, mas só para além do Tibre, ou seja, fora dos muros da cidade, como deve ser interpretado. Os Romanos, apesar desta lei bárbara, já tinham a noção de que certos actos não deviam ser praticados dentro da cidade. A Lei das XII Tábuas (450AC) – Tábua Terceira - determina o esquartejamento do devedor e a divisão do corpo pelos credores, (tantos pedaços quantos os credores). Esta prática, além de um castigo corporal, também era um sério aviso para os devedores terem cautela e não deixarem de cumprir as suas obrigações. O corpo era sempre o último responsável pelo pagamento da dívida.
Ao longo da história do homem, as leis evoluem e tendem a tornar-se mais humanas. Assim se alteraram as relações entre credores e devedores. A acção pauliana foi instituída pelo Pretor Paulus, por isso o seu nome, com a – Lex Poetilia Papiria – no ano de 169AC, (que transferiu a execução da dívida do corpo do devedor para o seu património). Na cidade de Roma houve um grande escândalo que causou muitos falatórios de reprovação por diversas assembleias de cidadãos. Um credor mandou prender um seu devedor, levou-o para casa e, segundo o direito que lhe assistia, além de passar à condição de seu escravo, abusava sexualmente dele; dizem os escritos da altura, que o devedor era um jovem muito formoso, de nome Paulus. Por isso, também muitos historiadores defendem que foi este Paulus que deu o nome à acção pauliana. Recusava pagar a sua dívida por entender que ainda se não tinha vencido. Perante este escândalo que agitou a cidade, e sobretudo para evitar abusos por parte dos credores, o Pretor Paulus decretou que a acção de execução de dívidas não podia ser contra a pessoa do devedor, mas dirigida ao seu património, ou seja, só os bens do devedor respondiam pelas suas dívidas. Sobre o devedor não podia ser exercida qualquer pena que atingisse a sua integridade física. Este decreto, como um princípio geral de direito, ainda hoje existe e está consagrado no actual código civil português, (art. 610º e sgs – impugnação pauliana). Seguindo o mesmo princípio, também há vários séculos, foi abolida a pena de prisão por dívidas.
É nos momentos de grandes crises económicas, geradoras de incertezas quanto ao futuro, que surgem mais situações em que os devedores fraudulentos se desfazem do seu património com a intenção de fugir ao pagamento das dívidas. Uma vez, na minha vida profissional, recordo-me de atender um cliente que estava muito aflito pois, como ele dizia, um devedor tinha feito escrituras de dações e de venda de todos os seus bens e já nada restava para lhe pagar uma dívida. Depois de ouvir as razões do cliente, feitas as necessárias explicações, comuniquei-lhe que teria de se recorrer a uma pauliana para resolver o seu problema. Como estavam preenchidos todos os elementos necessários para articular a acção, foi este o caminho processual que se trilhou. Depois da tramitada a acção, o credor veio ao escritório a pagar os meus honorários e, pela primeira vez, acompanhado da sua esposa. No fim, despediram-se e já de saída, virando-se para a esposa, ele fez a seguinte comentário: - para ganhar a acção o senhor doutor teve de se servir de uma pauliana.
Não sei se alguma vez aquele cliente entendeu o que era uma acção pauliana, mas fiquei a saber o que era uma pauliana para a sua esposa quando fez o seguinte observação ao marido: - anda, anda daí, nós não temos nada a ver com a vida privada do senhor doutor.

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