A opinião de ...

Artur Pimentel, memórias e saudade

A notícia inesperada apanhou-me em Moimenta da Beira, ao chegar ao Centro de Formação da Associação de Escolas do Douro e Távora, onde ia falar de “nacionalismos e autonomias”. “Faleceu o Dr. Pimentel” – dizia o Rui Matias ao telefone. Fiquei em estado de choque. Para me recompor, refugiei-me no dever e adiei o sofrer. Perder um amigo, é como perder uma parte de nós.
Conheço o Artur Guilherme desde que nasci. O que guardo desse período distante num escaninho da memória pode não corresponder exatamente aos factos tal qual aconteceram. É bem possível que os acontecimentos de outrora estejam já contaminadas por impressões mais recentes. Muda o olhar e muda o lugar. O olhar da criança redimensiona e pinta as formas desbotadas e neutras do olhar adulto. Tudo é filtrado pela sensibilidade.
Olho para trás e, na névoa indistinta do passado, o Artur emerge ligado à minha infância, altura em que se forjam os primeiros laços de afeto e cumplicidade; aos primos Garcia, meus e dele; ao café dos chocolates e brincadeiras sob o olhar complacente da Amélia e da Maximina; às verbenas de verão na avenida, crianças à frente, adultos atrás, conversando, atentos a eventuais desmandos; às festas de Nossa Senhora da Assunção e a tantos outros bons momentos passados em Vila Flor.
Já adolescentes, no Porto, ele, no Colégio Almeida Garrett, e eu no vizinho Colégio Liverpool, mas indo às aulas ao Liceu Carolina Michaelis, pouco nos encontrámos. Nessas idades, uns anos de diferença determinam interesses desiguais. Muito mais tarde, em Lisboa, já adultos, ele, administrador do Hospital Dona Estefânia, e eu deputada à Assembleia da República, os nossos caminhos cruzam-se e alargam-se aos amigos comuns.
A partir daí, sucederam-se os reencontros. Deslizam como num filme e saltam da lembrança factos, pessoas, situações inesquecíveis. Revejo a sua obra de edil exemplar. A construção do Centro Cultural e a valorização do património. Mas também o apoio à gravação da novela “A outra” que pôs Vila Flor no mapa nacional, atraindo curiosidade e investimento.
O Artur tinha muitas qualidades políticas. Mas o que mais distinguia este homem singular eram as suas qualidades humanas. A genuína preocupação com as pessoas, nunca regateando a palavra de apoio a quem dela necessitava, sem impaciências ou discriminações. A importância da amizade que ele cultivava sem olhar a idades, credos ou ideologias. E tinha um invejável sentido de humor que a todos cativava.
O Artur contava histórias como poucos. E escrevia muito bem. Leiam-se as curtas narrativas de grande intensidade afetiva, com personagens de carne e osso, personagens de uma peça monumental que era o quotidiano da vila, publicadas no Facebook, mas que merecem ser dadas à estampa. Emocionei-me ao reler a prosa poética dedicada à mãe, Maria Cândida, saindo do aconchego do lar nas noites frias de inverno para abrir a farmácia e fornecer os remédios aos que deles careciam.
Nos seus escritos, por entre uma polifonia de vozes e sentimentos, sobressaem descrições de lugares, retratos de uma sociedade com seus usos e costumes, adequadamente ilustrados com fotografias da época. Fala-nos daqueles que partiram para longes terras e periodicamente a visitam e dos que a ela regressam para completar o sonho de partilhar o êxito alcançado em terra alheia.
O Artur nasceu num ano memorável, 1945. O ano em que a bomba atómica destruiu as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. O ano que marcou o fim da segunda guerra mundial que devastou a Europa e matou dezenas de milhões de pessoas. O ano do início do julgamento de Nuremberga e da aprovação da carta da ONU que estabelece as Nações Unidas. Mas partiu antes de tempo, desaparecendo “nos maios da nossa existência”, como ele próprio escreveu. Fica-nos a obra e a memória de um profissional competente, de um político com visão estratégica, de um amigo afetuoso, de um homem bom, honesto e generoso. Vamos sentir muito a sua falta.
À Xira, a mulher da sua vida, à Ana e ao Luís, o orgulho do pai, e ao Quim, o irmão de todas as cumplicidades, um grande abraço amigo.

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3730

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